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Crítica | Legalidade

por Rodrigo Pereira
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“Até onde tu irias se lutasse por algo que acreditas?”

Após o presidente Jânio Quadros renunciar, em agosto de 1961, alegando o levante de “forças terríveis” contra ele, João Goulart, então vice-presidente, assumiria o cargo, conforme a Constituição de 1946. O problema é que João Goulart (ou Jango, como era conhecido), apesar de sua imensa popularidade, não inspirava nenhuma simpatia na ala militar. Pelo contrário, houve uma tentativa de inviabilizar a posse de Jango, que estava em visita à China no momento do início desse episódio, através de um golpe.

Indignado com a situação, típico de sua personalidade e suas convicções, Leonel Brizola, à época governador do Rio Grande do Sul e cunhado de João Goulart, resolve resistir até as últimas consequências. O Palácio Piratini, sede do governo estadual até os dias atuais, torna-se um centro de resistência, com os porões do prédio servindo como estúdio de rádio improvisado, onde Brizola realizava seus pronunciamentos para o máximo de cidades gaúchas e demais estados brasileiros possíveis, denunciando as intenções dos militares e convocando a população a juntar-se ao movimento. Todo o acontecimento durou 14 dias, quase desencadeou uma guerra civil no país e ficou conhecido como Campanha da Legalidade. Tudo isso e muito mais está presente em Legalidade, novo filme do diretor Zeca Brito.

O foco do longa, como o próprio título entrega, é o movimento liderado por Brizola (Leonardo Machado). Começamos o filme dentro de um quarto, com uma bela cena de abertura onde vemos alguém organizar uma mala como se estivesse de partida. Ao colocar a faixa presidencial por último dentro da bagagem e fumar um cigarro próximo à janela, logo identificamos tratar-se de Jânio Quadros. Seus óculos característicos aparecem no reflexo da janela, enquanto ele inspira e expira a fumaça com celeridade, criando uma aura gasosa efêmera certeira não somente ao personagem, que não aparece novamente na projeção, mas também a curta história do homem que renunciou ao cargo presidencial com apenas sete meses de mandato.

Em seguida, somos rapidamente apresentados, um após o outro, aos três núcleos trabalhados por Brito. O primeiro foca essencialmente em Brizola e suas decisões ao longo dos dias para garantir a volta de Jango ao Brasil, assim como sua posse; o segundo gira em torno da relação de Tonho (José Henrique Ligabue), um jornalista de um jornal porto-alegrense, e Cecília (Cléo Pires), uma jornalista do estadunidense Washington Post enviada para entrevistar o governador gaúcho; o terceiro e com menos tempo de tela é o arco da personagem Blanca (Letícia Sabatella), suposta filha de Cecília e Tonho, que busca respostas sobre a vida de seus pais, já que o longa sugere que ambos morreram em decorrência da ditadura militar instaurada nos anos seguintes. Há ainda o breve arco isolado de Luiz Carlos (Fernando Alves Pinto), antropólogo, irmão de Tonho e amigo de Brizola, com indígenas guaranis na Região das Missões, no Rio Grande do Sul. No entanto, é algo tão isolado, breve e que só traz sentido a existência do personagem quando este junta-se a Brizola e Tonho em Porto Alegre que mal podemos considerar um núcleo narrativo.

Com os três núcleos estabelecidos, começamos a identificar alguns problemas no filme. O que mais me gritou aos olhos foi a incapacidade do segundo e terceiro núcleos prenderem nossa atenção. Enquanto Leonardo Machado faz uma magnífica interpretação de Brizola e todo seu entorno é digno dos melhores longas políticos, o mesmo não acontece com as histórias paralelas, chegando ao ponto de ficarmos ansiosos para que Brizola e a trama política volte à cena. Prova disso é o romance de Cecília e Tonho, que vemos passar de algo quase insosso quando estão em foco a algo bastante interessante quando suas ações e núcleo aproximam-se do de Brizola. Por acontecerem muito no futuro, as partes com Bianca, não à toa, são as mais fracas, quase sem despertar interesse da plateia (ainda que retrate a dolorosa e delicada realidade de tantas pessoas que buscam respostas sobre familiares desaparecidos durante a ditadura).

No entanto, vale ressaltar o cuidado nos detalhes da direção para demarcação temporal. Como a maioria do longa não conta com planos abertos, trabalhando muito com planos médios e fechados, ficaria difícil distinguir as épocas, já que os dois primeiros núcleos passam-se em 1961 e o terceiro, em 2004. Peguemos Cecília, por exemplo, que passa o longa quase em totalidade com o cabelo extremamente alinhado e preso em forma de coque. Blanca, por outro lado, deixa seu longos cabelos negros soltos e até um pouco desgrenhados, assim como uma amiga sua, que ostenta um penteado loiro curtíssimo e repicado, algo incomum na metade do século passado. A atenção com as localidades e os sotaques, principalmente o porto-alegrense, é outro ponto digno de elogios no longa.

Por envolver questões políticas e posicionar-se tão abertamente, muitas pessoas não simpatizarão com o filme, o que é uma pena. Claro, se você for alguém de esquerda fica muito mais fácil apreciar a obra, mas ela nem de longe resume-se somente a isso. O desenrolar da trama amorosa, ainda que comece de forma pouco interessante, melhora com o tempo e desperta nosso interesse enquanto toda a trama política é interessantíssima, funcionando em alta voltagem e prendendo nossa atenção do início ao fim. Fora ser um longa digno de uma das figuras políticas mais relevantes desde a Era Vargas, Legalidade é um interessante trabalho em que se pode odiá-lo ou amá-lo, mas impossível ficar indiferente à ele. Tal qual Leonel Brizola.

Legalidade — Brasil, 2019
Direção: Zeca Brito
Roteiro: Zeca Brito, Leo Garcia
Elenco: Cléo Pires, Letícia Sabatella, Leonardo Machado, Fernando Alves Pinto, José Henrique Ligabue, Paulo César Peréio, Sapiran Brito
Duração: 122 minutos

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