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Crítica | Listen (2021)

Direção desinteressada e contradições em conteúdo marcam filme luso-britânico.

por Michel Gutwilen
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Antes que o leitor me compreenda mal ou ache que estou de má vontade, não há absolutamente nenhum problema em um filme ter uma “mensagem de cunho social”, mas sim ele ser “só” isso. A história do Cinema está repleta de obras-primas cujo conteúdo é extremamente político/sociológico, como por exemplo: M (1931), de Fritz Lang, que reflete sobre os perigos do justiçamento social; 12 Homens e uma Sentença (1957), que olha para os preconceitos da sociedade em um Tribunal do Júri; A Negra De… (1966), que cria um conto sobre sobre a “escravidão moderna” dos emigrantes africanos que vão trabalhar na Europa em busca de emprego. Esses são apenas três exemplares de um incontável número de grandes obras progressistas espalhadas pelo século passado. 

Em comum, todos esses filmes possuem o diferencial de que eles não ficaram marcados na história apenas por seus temas, mas por suas qualidades enquanto Cinema, com uma mise-en-scène pensada por seus diretores(as). Há algo de atemporal além da mensagem (esta que se restringe ao contexto temporal no qual o filme é feito), que é o tratamento do Cinema não apenas como um meio ou veículo, mas recebendo a atenção enquanto um fim artístico em si mesmo, conciliando esta preocupação social de seu conteúdo com a forma cinematográfica. 

É difícil e perigoso traçar diagnósticos, mas cada vez tenho mais a impressão que as grandes referências do realismo contemporâneo pelos festivais europeus, Ken Loach e os irmãos Dardenne — por mais méritos que tenham e inclusivo gosto de alguns desses filmes — geraram uma sub-geração de cineastas cujas preocupações estão cada vez mais longe do ofício cinematográfico. Dentro deste contexto, está o luso-britânico Listen — que foi o escolhido inicialmente para representar Portugal no Oscar 2020, mas acabou sendo desclassificado pelo excesso de língua inglesa — e sua história sobre uma família portuguesa que vive no Reino Unido e passa por dificuldades financeiras, o que leva o serviço social britânico a interferir na guarda dos filhos menores do casal, inclusive uma delas sendo deficiente auditiva. 

Inclusive, estava observando a recepção espectatorial do filme na rede social Letterboxd, e percebi que uma usuária avaliou-o positivamente, descrevendo que ele “passou bem a mensagem e a crítica social”. Talvez esta frase elogiosa seja o maior exemplo porque desprezo este tipo de filme, uma vez que ela descreve perfeitamente qual seu maior objetivo: ser temporário. O Cinema se torna meio comunicativo para passar uma mensagem e depois que ela chega ao seu receptor, a linha de comunicação (o filme) deixa de existir, uma vez que o meio já cumpriu sua função. O verdadeiro Cinema precisa sobreviver mesmo depois do fim. Ele não “passa”, mas “fica”.  

Diga-se de passagem, para não restar dúvidas, a premissa é muitíssimo válida e perfeitamente condizente nos tempos atuais, uma vez que tenta dialogar com diversos temas “importantes”: a xenofobia; as dificuldades de pessoas deficientes auditivas, a crise econômica financeira na Europa, a cruel lei inglesa e ação do Estado diante da tomada de guarda de pais negligentes e como isso é um conceito desconexo do mundo real. Porém, narrativamente (principalmente se pensarmos no clímax pensado para ser um monólogo de tribunal), Listen é um um filme que já foi visto dezenas de vezes, de modo que há dificuldade em buscar por qualquer ponto distintivo que destaque ele no meio da multidão desses outros projetos que se tornam esquecidos na história do Cinema. 

Se há um subtexto minimamente complexo em Listen é seu o caráter poliglota, de modo que a comunicação e a linguagem verbal ou de libras não estão ali só para diálogos expositivos, mas ganham uma gama de significados tanto políticos quanto narrativos, em sua alternância entre o inglês, português e as libras. A naturalidade com que a família troca o inglês para o português, por exemplo, em uma cena caseira é uma forma de afeto verbal. De mesmo modo, é também um mecanismo de defesa e nacionalismo quando estão na frente de autoridades inglesas. O mesmo pode ser dito de quando a funcionária insensível do serviço social não deixa a mãe se comunicar em libras com a filha, pois reconhece que a comunicação que ela não entende pode ser uma ameaça para ela.

Por outro lado, mesmo que se aceite a mediocridade de Listen em ser mero veículo para uma mensagem, a construção narrativa ainda parece ser extremamente problemática. Primeiramente, porque fica muito visível que a intenção do filme é construir um maniqueísmo no qual os agentes do Estado são maus e a mãe é uma injustiçada, mas sua execução sai como um tiro pela culatra. Afinal, o roteiro mira na construção da mãe enquanto uma figura complexa que toma escolhas erradas devido às necessidades e o desespero frente ao capitalismo cruel, mas ele é muito raso em contextualizar ou criar relações de causas e consequências para as suas ações, de modo que o que se vê na tela é uma personagem unidimensional. Afinal, antes de mostrá-la sendo uma ladra, não seria mais eficiente estabelecer uma cena anterior que mostrasse uma verdadeira necessidade fisiológica ou financeira para tal ato? Igualmente se pensa na cena em que ela abandona os filhos atrás de uma lata de lixo na rua. 

Não se trata de exigir uma “verossimilhança”, mas sim de coerência com suas intenções. Se o roteiro quer que sintamos dó ou simpatia da mulher, depois dessa cena a única coisa que se pode sentir é o oposto, uma genuína raiva. Inclusive, sendo um filme dirigido por uma mulher e escrita por duas, me espanta que o filme construa o pai de maneira muito mais complexa, enquanto uma figura “ponderada”, com momentos escritos para ele no roteiro onde é possível ver ele dando carinho aos filhos (a cena do banho), algo que raramente é concedido à mãe, que só vemos dando ataque. Por que reforçar esse estereótipo da “mãe louca” e do “marido ponderado”?  — o que não só passa pelo roteiro, mas pela direção de atores.

Inclusive, vou além em mais um desencontro entre a intenção e execução do tema de Listen: evidentemente, sua mensagem se filia nas intenções a uma esquerda progressista que quer criticar a frieza do capitalismo no tratamento das complexidades humanas, mas é tudo tão maniqueísticamente construído para mostrar o “Estado” como vilão que este filme pode ser muito bem reapropriado como símbolo por uma direita liberal que se identificaria com a mensagem de que nada pode sair de bom de uma interferência do Estado nos assuntos privados (o problema não é ele ser de “direita” ou “esquerda”, mas sim sua confusão na execução). Ou seja, no fim, não só é difícil achar alguma discussão cinematográfica em Listen, como também até se aceitarmos que o filme é só uma mensagem, essa parece ser contraditória e problemática em sua execução narrativa, por mais bem intencionada que seja.

Listen (2021) — Portugal, Reino Unido
Direção:  Ana Rocha de Sousa
Roteiro: Ana Rocha de Sousa, Paula Vaccaro, Aaron Brookner
Elenco: Lúcia Moniz, Sophia Myles, Ruben Garcia, Maisie Sly, Kiran Sonia Sawar, ,António Capelo, Jay Lycurgo, Kem Croft, Ângela Pinto, Susanna Cappellaro, Geoffrey Kirkness
Duração: 73 mins.

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