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Crítica | Lobo (1994)

por Leonardo Campos
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Tanto os homens urbanos quanto os cidadãos do campo perpetuam desde sempre mitos que integram as nossas tradições orais. O lobisomem é um deles, criatura com possibilidade de pensarmos a sua presença cultural dentro das estruturas conceituais do mito, narrativa que geralmente faz expõe características, atividades e ações construídas com alta carga de veracidade voltada a sua dependência com a Antiguidade. Quanto mais for antigo, mais sólido é o mito. É o que Mircea Eliade, renomado pesquisador do segmento, traz em suas publicações sobre o tema. No desenvolvimento de Mito e Realidade, o autor reforça que o mito é algo vivo, a fornecer modelos para conduta humana e por isso lhe é conferido valor à existência. Dentre todas as questões abordadas pelo material e com base em nossa observação panorâmica, o que podemos dizer dos lobisomens enquanto exposição de representação de modelos e condutas? Feroz, irracional e inadequado para a convivência em sociedade, a figura do homem que se transforma em lobo é uma imagem a não ser replicada pelos seres humanos, tamanha a sua monstruosidade.

Durante eras foi utilizado como explicação de determinados grupos para a explicação do “outro”, daquilo que para alguns, é exótico. No continente europeu, por exemplo, a mitologia em torno do lobisomem foi uma das maneiras que a sociedade arranjou para compreender dentro de seu limitado feixe de visão, a cultura alheia. Além dessa explicação para a identidade cultural do outro, o mito do lobisomem também exala uma fragrância que não deve ser parte das nossas opções olfativas cotidianas. Ele representa a conduta má, o sangue, a violência, aqui presente na postura de Will Randall (Jack Nicholson), editor do ramo literário que passará por uma transformação física e psicológica depois que é atacado por um lobo durante a travessia numa estrada deserta e coberta de neve. Depois de atropelar um animal inicialmente não identificado, Randall salta do carro e busca compreender o que atingiu, mas percebe a presença de algo ominoso, observador da floresta para a estrada. Sentindo-se em risco, tenta se deslocar para o automóvel, mas logo é ferido. Consegue escapar com vida, mas as coisas mudam em sua rotina mais apurada nos sentidos, a exibir comportamentos ligados ao que definimos como uma transformação em lobisomem.

Interessante observar, por sua vez, que a palavra em si não é mencionada durante o filme dirigido por Mike Nichols, cineasta guiado pelo roteiro de Jim Harrison e Wesley Strick, material dramático que a cada avanço, nos aproxima do seguinte questionamento: será o homem o lobo do homem? É o que trarei no desfecho desta reflexão, logo após a breve análise estética e contextual de Lobo, suspense de luxo lançado em 1994, produção que em seus longos 125 minutos, traz personagens acossados pela disputa acirrada em seus respectivos campos de atuação pessoal e profissional. Na trama, o personagem de Jack Nicholson não apenas sofre o incidente da abertura, mas descobre que o dono do empreendimento que é chefe, o Sr. Raymond Alden (Richard Jenkins), pretende demiti-lo para colocar o seu assistente, Stewart Swinton (James Spader), em seu lugar. Não fosse apenas isso, Randall é surpreendido pela esposa, Charlotte Randall (Kate Nelligan), companheira infiel que tem mantido um caso com o seu grande novo arqui-inimigo mais jovem e energizado para tomar as suas posses profissionais e pessoais.

Acuado, Will Randall encontrará em Lauren Alden (Michelle Pfeiffer), o apoio necessário para enfrentar os desafios desta crise. Filha que vive uma relação conflituosa com o Sr. Raymond Alden, a enigmática personagem adentrará na montanha-russa de emoções que engendram a vida de Randall, traído duplamente por Stewart, jovem que ocupa o papel de “seu lobo”. Na disputa, um misto de romance e terror compõem o caldo desta narrativa melodramática irregular em sua longa duração, principalmente nas cenas que se arrastam demais. Clima de novelão, não é mesmo? É, no entanto, um filme apresentado ao público com elegância, haja vista o elenco charmoso, a atmosfera envolvente tanto em seus aspectos visuais quanto sonoros. Talvez em outras mãos, Lobo se tornasse um exercício insuportável da linguagem cinematográfica, com dramas baratos e efeitos exclusivamente voltados para a violência e o choque. Mas Mike Nichols não pesa a mão e trabalha adequadamente, com uma equipe assertiva, principalmente no belíssimo trabalho de Ennio Morricone na trilha sonora, partitura que vai além do próprio filme e se estabelece como música para consumo externo, sem a necessidade de acompanhamento das imagens, afinal, o maestro italiano radicado durante algum tempo no sistema hollywoodiano era um mestre da textura percussiva, um dos nomes mais emblemáticos do campo sonoro na indústria do cinema.

A sua composição acompanha as imagens da adequada direção de fotografia de Giuseppe Rotunno, os figurinos sofisticados e narrativamente eficientes de Ann Roth, bem como a maquiagem do veterano Rick Baker, parte integrante da equipe de efeitos visuais comandada por Eric Brevig. O maquiador, para quem não se recorda, assumiu diversos trabalhos no segmento, em especial, o clássico Um Lobisomem Americano em Londres. Sobre o ponto de reflexão do homem ser o lobo do homem, precisamos ir rapidamente para Thomas Hobbes e sua máxima que hoje se espalhou pelos quatro cantos da vida cotidiana e ganhou multiplicidade de sentidos. Nos desdobramentos de Lobo, torna-se inevitável dissociar para quem conhece a expressão e a sua história. Stewart pode, sim, ser considerado o lobo de Will Randall, salvaguardadas as devidas proporções, obviamente. Nas ideias de Hobbes, temos expresso que o ser humano é naturalmente egoísta e carrega consigo a marca da maldade. Para que isso seja contornado, é preciso que a sociedade aplique o que o autor chama de contrato social, um processo de reparação das injustiças que contraditoriamente, tem em sua defesa, a figura do déspota.

O que Hobbes queria dizer com isso? Em suma, que a democracia não devia ser uma opção, pois um governo centralizado impede que uma série de opiniões divergentes estabeleça o caos social, com conflitos que causam desordem econômica e até tomada do poder. Trazido para o microcosmo da editora do Sr. Raymond Allen, as alegorias de Hobbes tornam-se ainda mais delineadas. Stewart seria a representação do homem que não possui predisposição para a vida em sociedade, com instinto violento contra o seu próximo, uma ameaça para sua própria espécie. Ele encontra, por sua vez, um colega de trabalho valente, personagem que utilizará de seus artefatos físicos, agora como um homem-lobo, juntamente com seus atributos intelectuais, para a manutenção do seu posto dentro das relações engendradas na editora, desestruturadas pelos conflitos entre os dois profissionais. Temos em Lobo, o jovem e o velho, a vanguarda e o tradicional, a selvageria capitalista e o “salve-se quem puder”, num embate que tem tudo para o estabelecimento da barbárie. Como reforçam as ideias de Thomas Hobbes, há uma tendência generalizada no homem, um desejo perpetuo de poder que só cessa com a morte, algo que veremos com exatidão durante o filme, perspectiva tão aterrorizante quanto torna-se ou ser vítima de lobisomem.

Lobo (Wolf – EUA, 1994)
Direção: Mike Nichols
Roteiro: Jim Harrison, Wesley Strick
Elenco: Jack Nicholson, Michelle Pfeiffer, James Spader, Christopher Plummer, Kate Nelligan, Richard Jenkins, Eileen Atkins, David Hyde Pierce, Om Puri, Ron Rifkin, Prunella Scales, Brian Markinson, Peter Gerety, Bradford English, Stewart J. Zully, Thomas F. Duffy, David Schwimmer, Allison Janney, Lia Chang
Duração: 125 min.

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