Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Locke

Crítica | Locke

por Leonardo Campos
1,6K views

Com pouco mais de um século de existência, o cinema é uma modalidade artística que contempla diversos tipos de personagens, sendo o maniqueísmo entre os mocinhos e bandidos uma das estratégias que engendram narrativas desde os primórdios desta arte versátil. O público gosta deste tipo de abordagem, pois é algo que dialoga com as suas existências, com os obstáculos e a maldade realista fincada em suas respectivas trajetórias. Outra questão é a cenografia. As dimensões espaciais de uma narrativa cinematográfica é um ponto a ser considerado no desenvolvimento de filmes, pois as produções situadas em ambientes mais fechados pedem dos realizadores uma direção fenomenal e um roteiro muito seguro de seu conteúdo. Diante do exposto, começo a minha reflexão sobre Locke, drama lançado em 2013, trama situada no interior de um carro ao longo de seus 85 minutos, com um único personagem a dialogar por telefone ou em seus pensamentos com os responsáveis por muitos conflitos que demarcam a sua trajetória apresentada durante a sua travessia numa estrada, durante a escuridão da noite.

Steve Knight dirige o próprio roteiro e nos apresenta Ivan Locke (Tom Hardy), um homem que não é exatamente um mocinho, mas uma pessoa comum, esférica, um “mocinho” que descobriremos ter sido um “bandido” durante um breve momento, algo que pode colocar um ponto final em seu casamento aparentemente perfeito. Nós funcionamos como passageiros silenciosos dessa história, observadores dos rumos tomados por Locke na curva da estrada de sua vida, um momento que pode ser crucial para mudanças ou apenas um breve deslize de uma caminhada sempre reta, dentro dos parâmetros sociais exigidos para um homem hétero casado, pai de família, bem-sucedido num emprego financeiramente rentável e que lhe dá o status de pessoa privilegiada numa sociedade de desníveis econômicos.

Ele trafega com uma aparência cansada, irritada, tensa. A estrada aqui funciona como metáfora para a sua vida atual, dividida entre “fazer a coisa certa” ou “jogar tudo pra cima”. Pelo fato de ser uma travessia noturna, solitária, com luzes dos automóveis que dividem a mesma estrada e apenas o céu escuro como testemunha de sua aflição, a alegoria ganha maiores dimensões nesta história contida sobre um homem acossado pelas pressões da vida. No entanto, esse lance de fazer ou não a coisa certa é algo muito relativo, pois dependerá do ponto de vista de quem observa. Ele recebe ligações de Bethon (Olivia Colman) e Katrina (Ruth Wilson), mulheres de representação dupla: enquanto uma é a estrada retilínea, a outra é o deslizamento. Uma é a esposa e a outra é a mulher grávida que o espera no local onde é atendida emergencialmente.

O que Locke fez? Por qual motivo ele seguiu outro caminho em sua noite e largou para trás as responsabilidades da entrega de um material para a construção na qual a sua empresa é responsável? Ele é um cara confiável no trabalho, mas será que esse excesso de representação social não o deixou extremamente exausto? Será Locke um road-movie? São várias as perguntas e as vantagens do texto de Steve Knight é não as tornar pedagógicas demais. É preciso que o espectador, agraciado pela eficiente direção de fotografia de Harris Zambarloukos, se deixe levar pela narrativa que praticamente nos insere dentro do automóvel, uma BMW confortante e com lugares privilegiados para o acompanhamento dessa travessia emoldurada por planos milimetricamente calculados para as necessidades dramáticas pulsantes do único protagonista.

Editado por Justine Wright, Locke é um filme que tem em sua condução musical, a sutileza sonora do trabalho de Dickon Himchiliffe, discreta e contida como as peculiaridades da jornada do personagem que evita a histeria e atravessa uma angustiante noite que parece ser longa para quem vivencia os dilemas apresentados na história. O filho telefona, a esposa questiona, o parceiro de trabalho pressiona e o protagonista, apenas com seu desempenho facial, expressa os sentimentos enquanto dá sinal, faz ultrapassagens e guia a sua vida de pai e engenheiro para um rumo que nós podemos interpretar por diversos vieses, tendo nesta viagem o carro como extensão de seu próprio corpo, numa narrativa de limitada espacialmente, mas dramaticamente maior do que pode parecer para quem deseja apenas entretenimento, sem maiores reflexões.

Locke (Reino Unido, 2013)
Direção: Steven Knight
Roteiro: Steven Knight
Elenco: Tom Hardy, Olivia Colman, Andrew Scott, Ruth Wilson, Tom Holland, Ben Daniels, Bill Milner
Duração: 85 min

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais