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Crítica | Longa Jornada Noite Adentro

Dor, miragem e morte.

por Frederico Franco
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Uma pomposa casa de campo de uma família pequeno-burguesa torna-se palco de um grande expurgo de demônios familiares. Próxima do rio, com um belo jardim e uma pequena marcenaria, a residência da família Tyrone, à primeira vista, é um seguro e confortável palacete. As aparências, no entanto, são, logo em seguida, desmascaradas. Entre risadas e piadas, os quatro membros da família, James e Mary, os pais, e Jamie e Edmund, os filhos, são apresentados para o espectador de maneira suave e leve. A suposta paz, na medida em que a noite chega, torna-se tormento. As dores ali reveladas não surgem do exterior, mas sim do âmago das próprias relações familiares. James, ator renomado, tenta convencer Jamie a seguir seus passos à medida em que busca tratar o alcoolismo do filho. Por outro lado, Mary, viciada em remédios para dores, nega a triste realidade de estar perdendo Edmund para uma enfermidade aparentemente incurável. Os Tyrone, ao longo do dia, passeiam por diversos terrenos arenosos que revelam uma melancólica e complexa dinâmica social capaz de fazer implodir seus laços familiares.

Longa Viagem Noite Adentro pode ser enquadrada enquanto um drama de costumes da alta sociedade, capaz de expor a verdadeira escuridão que se esconde dentro de núcleos burgueses. Assim como Tchékhov em suas celebradas peças Tio Vânia e A Gaivota, Sidney Lumet desnuda seus personagens pouco a pouco, mostrando cada vez mais suas próprias fraquezas e inquietações. As famílias em ambos Tchékhov e Lumet são, de certo modo, disfuncionais; são poucos os momentos de relaxamento em comparação às dores apresentadas. Assim como nas principais peças do autor russo, os silêncios, esporádicos, mas sagrados, são um pequeno momento de respiro da família Tyrone. O texto do filme, assinado por Eugene O’Neill, atua como facas que perfuram a pele dos protagonistas; nada é dito por acaso, toda frase dita por cada um dos personagens possui em sua natureza um objetivo de ferir a si ou o próximo. Os silêncios, dessa maneira, são um descanso parcial para as almas ali contempladas: a fúria verbal dá descanso, mas as feridas abertas seguem sangrando – e não há nada que indique que, ao final de tudo, elas serão fechadas. Assim como em Tio Vânia, em Longa Viagem Noite Adentro, os protagonistas sangram até o final, sempre na expectativa de que algo melhor virá.

Quando não existe uma vida real, a gente vive de miragens“, dirá um personagem da peça de Tchékhov. Entre sonhos futuros e dias felizes que uma vez foram reais, os personagens do filme de Lumet preferem ignorar o presente, sempre justificando suas ações através do futuro. Mary, por exemplo, apresenta-se como alguém extremamente ligada ao passado do núcleo familiar, sempre com a ideia fixa de negar a doença de Edmund. As miragens aparentam ser mais fortes na protagonista feminina. Suas constantes idas ao passado e conjecturas utópicas são a forte marca de uma personalidade ímpar construída pelo diretor. Seu vício em morfina, por exemplo, serve como uma materialização de seu estado de espírito: as drogas são as miragens, que desviam o foco de dores que realmente devem ser sentidas na pele. O destino de Edmund, diagnosticado com tuberculose, é fatal e caminha a passos largos em sua direção – seu fim é iminente e incontornável. Mary, por outro lado, não aceita ser atravessada pelo destino e se utiliza do passado e do futuro para amenizar sua dor. E aqui pode ser anotado um mérito de Lumet ao entregar por inteiro sua mise en scène à Katherine Hepburn que, à Uma Mulher Sob Influência, domina a cena em todas suas participações catárticas. Todos os movimentos e cortes parecem calculados milimetricamente para entregar com visceralidade todo as entranhas da protagonista.

Outro detalhe da construção do filme de Lumet pode, também, estar associada à uma ideia recorrente na literatura naturalista de Émile Zola: a pulsão de morte ou tendência à destruição. O caráter trágico dos personagens de Longa Viagem Noite Adentro é um canal pelo qual o diretor expõe uma certa tendência ao naturalismo. Seus personagens de forma alguma são construídos para representarem temas generalizantes, muito pelo contrário: seus problemas, seus medos e suas dinâmicas são extremamente específicas e dificilmente relacionáveis em maior escala. A morte, a doença da sociedade, é estudada de modo macro, a partir de um recorte único; pouco importam as implicações sociais dessa pulsão de morte, cabe apenas explorá-la. Dessa forma, a mise en scène de Sidney Lumet possui um papel central na compreensão da tragédia familiar aqui mostrada. Seu princípio básico, por exemplo, aparenta ser a máxima da montagem proibida de André Bazin – conservação do plano democrático e da articulação da montagem intraplano, deixando o corte apenas para ser utilizado em último caso. Em inúmeros momentos, em diálogos mais amenos ou em silêncios, Lumet opta por planos cuja utilização da profundidade de campo é digna de Orson Welles. No entanto, quanto mais áspera a dinâmica entre os protagonistas se torna, mais surge a mão do diretor. 

Sidney Lumet demonstra enorme controle da encenação à medida em que o tom dos diálogos sobe. Seja através de movimentos de câmera ou de cortes, o diretor demonstra controle absoluto das emoções e reações de seus personagens. Os incisivos close ups funcionam como ponto máximo de descarga emocional dos protagonistas – a articulação da linguagem, cabe dizer, está próxima de uma transparência, fazendo com que os cortes em si não ganhem destaque, focando as atenções na natureza específica daquilo que mostra o plano. Esse jogo de linguagem, culminando em closes, é o modo que Lumet encontra de apresentar ao espectador a especificidade da tragicidade de seus personagens: não há, em A longa viagem noite adentro, tentativa de explorar a generalização dos problemas da família Tyron; o que importa, no filme aqui descrito, é focar nesse peculiar e disfuncional núcleo familiar.

Todas as principais ações do filme de Lumet ocorrem dentro da grande mansão da família. O mundo exterior não é mostrado ao espectador. Tudo o que se passa fora da casa é como um delírio: são apenas histórias e conjecturas, nada é concreto. O lado de fora é quase uma dimensão impossível de ser alcançada pelos personagens do filme. O lar dos Tyrone, uma fortaleza opressora, iluminada muitas vezes em chiaroscuros e com uma arquitetura agressiva, prende os protagonistas e dá luz a seus defeitos, inquietações e fragilidades. É como a enigmática mansão de O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, que possui uma força centrífuga que mantém presa qualquer um que ali pisar. As miragens de Mary e as histórias de James são as poucas referências que se tem do mundo exterior. O lar, dessa forma, possui a única função de mostrar a realidade psicológica de seus personagens. 

A iminência da morte é um tópico específico aqui já citado no que diz respeito ao naturalismo literário. Em Longa Viagem Noite Adentro, a morte, além de ligada ao enfermo Edmund, também se faz presente nas outras relações entre os personagens. Há, ao longo do filme, um pavor da dissolução do próprio núcleo familiar – o medo da fragmentação da família Tyrone é, talvez, o grande x da questão. Volto à Tchékhov, à Tio Vânia, novamente: “o temor da morte é um medo animal […]. Só temem a morte de forma consciente aqueles que creem na vida eterna e sentem um medo terrível de seus pecados“. Os Tyrone, antes de qualquer coisa, estão sendo consumidos pelo medo do futuro e pela amargura de seus erros passados. As feridas familiares estão abertas há muito tempo e o presente não lhes parece capaz de curá-las. Seus pecados são muitos e as pretensões de um futuro melhor são, cada vez mais, vistas como uma utopia, como uma miragem.

Longa Viagem Noite a Dentro (Long Day’s Journey Into the Night) – EUA, 1962
Direção: Sidney Lumet
Roteiro: Eugene O’Neill
Elenco: Katharine Hepburn, Ralph Richardson, Jason Robards, Dean Stockwell
Duração: 174 min.

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