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Critica | Lost – 1ª Temporada

por Iann Jeliel
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Lost

  • PODE CONTER SPOILERS DE TODAS AS TEMPORADAS! Leia, aqui, as críticas de todo nosso material do Universo Lost.

Lost Everything Happens for a Reason.

John Locke

Em Solaris, de 1972, Andrei Tarkovski pegava como base um preceito científico, a viagem espacial para descoberta de um novo planeta, somente para que quando chegasse lá todas aquelas alucinações dos personagens não tivessem explicações racionais claras, pelo contrário, aquela vida alienígena materializava memórias obscuras e reprimidas para demonstrar no pessimismo do russo que o ser humano nunca estaria pronto para desvendar os mistérios da força atuante naquele planeta, até que seus demônios internos fossem combatidos. No fim das contas, o filme de Tarkovski poderia ser descrito não como uma ficção científica, mas como uma fantasia que se utiliza da base científica para complexar suas questões existencialistas. Eis que temos Lost, o fenômeno televisivo mais relevante dos anos 2000, comandado por J. J. Abrams – o homem da ciência – e Damon Lindelof – o homem da fé – , que explodiu por conta dos seus intrigantes mistérios e pela forma como  eles eram sobrepostos para prender a atenção do telespectador e estimulá-lo a criar uma comunidade para tentar desvendá-los.

Ora, olhando como mainstream, sem dúvidas essa é uma das características mais marcantes da série, a qual muitos resguardam uma memória afetiva por lembrarem da destreza e fórmula adaptativa impressionantes com que ela os ludibriava. São, inclusive, incontáveis momentos – que serão devidamente relembrados – de explodir a cabeça, reviravoltas e ganchos para novas descobertas que deixavam o telespectador salivando por respostas, o que indiretamente representou um perigo lá na frente, quando essas entregues não eram exatamente como se imaginava. O pretexto desses mistérios, inicialmente na cabeça de J. J. Abrams, estruturava-se no conceito da caixa preta, um sistema fechado – a ilha – de complexidade potencialmente alta – os mil e um mistérios rondando cada personagem –, cuja estrutura interna é desconhecida – a mitologia da ilha. A primeira temporada é, portanto, como a de qualquer outra série que não sabe exatamente se a proposta irá ser levada para a frente. Mas ela, por ter duas mentes por trás, teria dois avais para continuidade, um micro planejamento que seria testado em duas vertentes de certo grau de experimentalismo em sua estrutura.

Levando em conta sua característica de autor de estúdio, J. J. soube sobrepor a sua camada primeiro, e teve méritos por impor as camadas de mistérios sequenciais – uma revelação que levava ao próximo – como motriz de entretenimento, basicamente brincando com as informações primordiais levantadas e as jogando para ver se funcionavam ou não. Algumas sim, outras não – detalhes mais à frente – , mas o que importa é que a base estilística visual da série conseguiu atingir um esplendoroso padrão, responsável pelo seu sucesso como “evento”, ou no mínimo uma referência para que o evento se modificasse com o tempo. Na parte de Lindelof, aí sim,  figurava a real decupagem identitária como NARRATIVA. A grande questão é que o showrunner, diferente do seu parceiro, não era um homem de show business, mas também não o negaria para vender a sua real proposta, intrincada inicialmente apenas em detalhes, que na visão imediatista do público fanático talvez não eram possíveis de ser enxergados, principalmente porque dentro da fórmula do J. J., uma das grandes características era o duplo sentido por trás de qualquer revelação, o que certamente criou no público um vício problemático de teorização acima do embate físico/espiritual, onde tudo precisava ser racionalizado com mirabolância parecida ao que aparentemente os roteiros entregavam em suas conexões.

Eis que retomo Solaris, e a perspectiva de chamar a atenção científica para o desdobramento fantasioso que se revela um estudo desconfortável humanista. O percurso da primeira temporada foi somente a primeira parte da jornada, contudo isso não quer dizer que as pistas para a final não estavam lá desde o início, em um caminho tracejado primordialmente pelo seu autor, Lindelof, e estilizado em imagem-visual pelos seus organizadores, J. J. como instaurador da fórmula, mas principalmente Jack Bender, Stephen Williams e Carlton Cuse como desenvolvedores dela dentro da ideia de Lindelof, dessa imensa transição, ou melhor, embate entre a ciência e a fé para desdobramentos humanistas.
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Piloto

Lost

“Se fosse eu na sua situação, teria corrido.” – Kate Austen Lost Lost Lost Lost Lost

“Eu discordo, você não está correndo agora.” – Jack Shephard Lost

Toda série tem um início, mas poucas tiveram o orçamento que Lost teve para promovê-lo de forma tão inesquecível. Desde o primeiro plano, cada enquadramento e desdobramento é fundamental para a compreensão da construção identitária da série mencionada anteriormente, afinal, é isso que define um bom piloto, não é mesmo? Quanto melhor resume a proposta geral da série, e Lost talvez tenha ido um pouco além com essa significação.

Abre os olhos, um plano do céu, um cachorro observa o protagonista, Jack (Matthew Fox), que mais tarde saberíamos ser um médico que acaba de cair do avião Oceanic 815 para Los Angeles junto a aparentes 48 sobreviventes, todos lutando para conseguir se desviar dos destroços. Uma cena incrível, desnorteante, onde cada micro atitude de ajuda alheia já revela uma característica de um personagem, em especial Jack e seu senso de liderança proeminente e instinto de salvar todos a qualquer custo, que mais tarde viria a ser desenvolvida bem como todas as sugestões deixadas ali. Não demora muito, na primeira interação com Kate (Evangeline Lilly), Jack pede para ela o costurar e dialoga sobre sua primeira cirurgia, e como ela  reflete no homem que ele é no momento, que faz o que tem que ser feito racionalmente, e no que Kate será após ter sobrevivido, não sendo mais aquela que foge do que ela tem que fazer.

Mais tarde, os dois junto a Charlie (Dominic Monaghan) se voluntariam a buscar o “Piloto” do avião, e na cabine que caiu um tanto longe da praia, tentar estabelecer alguma conexão com o exterior. Contudo, eles são impedidos por um monstro da ilha, uma criatura invisível e altamente sugestiva, que devora o piloto e cessa a missão da comunicação terminando de quebrar o rádio, além de perseguir os personagens, com Kate na ocasião já usando a tática que Jack acaba de lhe ensinar sobre contagem de números para se acalmar e sair da situação de risco. Mas ora, o que seria esse monstro, afinal? As respostas mais claras viriam no futuro, pois era esse o primeiro implante da pilha de mistérios sequenciais mencionados, contudo, simbolicamente, somente com essa cena já dá para desvendá-lo, ele é a motriz que interfere nas chances de resgate, uma espécie de força que parece querer mantê-los ali a qualquer custo. Se todos que estavam ali sobreviveram, e ninguém podia sair, era porque existia uma razão para eles chegarem, mas qual razão?
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WalkaboutLost

“Dois jogadores, dois lados, um é claro o outro é escuro… Walt… quer saber um segredo? ”

John Locke Lost

Dizem que ninguém é ateu durante uma queda de avião, ou melhor, qualquer situação de vida ou morte desestabiliza a crença da pessoa, ela passa a acreditar e a rezar para que uma força maior a ajude e começa a questionar o propósito daquele acontecimento, caso saia com vida. Não que isso aconteça diretamente na retomada em flashbacks simulando a queda, contudo não demora ao longo do próprio piloto para os sobreviventes perceberem as metamorfoses misteriosas da ilha e começarem a questionar o que os levou até ali, quase que num assustador desamparo, de que eles não chegaram naquele local à toa. Retomo a dicotomia Lindelof e J. J., quem a questiona só pergunta por que a ciência esconde a razão daquilo, o urso polar numa ilha tropical, a chamada de uma francesa em repetição por 16 anos, como? Charlie diz: “Guys, where are we?”, e o choque de todos nessa fala a princípio é sobre a bizarrice da situação, inclusive do público, só que mais tarde, descobrimos que na verdade é pela coincidência do DESTINO que os levou até ali.

A chave de quebra fica em um personagem, que depois da queda parecia ser o único a ter uma informação a mais que todos, e realmente ele tinha e apresenta isso num jogo de gamão. John Locke (Terry O’Quinn) chama Walt (Malcolm David Kelley), uma criança, para jogá-lo com ele, que é como nós, o público, vamos ser domesticados pelo roteiro, que seria ele, pois está à frente com as informações das regras desse jogo, só nos dando uma pequena dica – como mostra a imagem. Inclusive, essa cena na perspectiva de duplo sentido do J. J. pode até ter sugestões erradas – eu, por exemplo, achava que ele era um pedófilo no início, enfim, pensamentos surgidos da mentalidade trágica que o J. J. criou na gente. Até por conta disso, não demora muito na dinâmica de flashbacks para ele ser um dos primeiros a ganhar um background que explica por completo qual o segredo que ele conta pra Walt – pra nós – no fantástico Walkabout, EPISÓDIO 4 da primeira temporada.

Pausando etapas, especifico a funcionalidade dinâmica do flashback, que consta em todos os demais episódios. Nesse início existem apenas dois tipos: o flashback motivador do personagem ir à ilha ou o flashback personificado que induz a motivação do personagem no presente da ilha. O primeiro é instaurado como apresentação e revelador do disfarce do personagem, afinal, quando todos caíram naquela ilha sem se conhecerem, cada um podia ser quem quisesse, e no contraste da máscara do presente com a real personalidade mostrada no passado próximo, a compreensão de cada um se tornava automática, e por sua vez, todos são desenvolvidos sem nem percebermos. A genialidade por trás dessa eficiência, nessa primeira temporada, está em como o mistério parte da sonegação de uma informação, revelada no momento certeiro para dar um novo sentido à camada dramática explorada.

É exatamente isso que descreve Walkabout, no episódio Locke age estranhamente como vinha agindo anteriormente, no entanto entre duas facetas, a do passado, evidentemente mais frágil, emocionalmente reprimida, e na ilha, transparecendo uma segurança assintomática, quase pretensiosa, num discurso de que sua fé levaria aos javalis e faria com que todos pudessem ter o que comer, algo que estava ficando escasso já. Em ambas as linhas temporais, a intersecção chegava no desejo de “ser especial”, não sabemos exatamente o porquê, mas compramos a dramaticidade no passado pela vontade de não ser mais ordinário, e no presente, pela necessidade de resolver a problemática da falta de comida. Eis que no final descobrimos que ele de fato é especial, antes da ilha ele era um cadeirante e tinha a crença de conseguir um lugar no ônibus para longas caminhadas nas paisagens da Austrália, o que foi negado pelos instrutores, que o mandam de volta a Sidney para pegar o tal avião que mais tarde cairia na ilha e o levaria a andar de novo.

Ninguém além de nós sabe dessa informação, e afinal, como explicar um cadeirante voltar a andar numa ilha se não algo voltado ao divino? Ou melhor, nesse mesmo episódio ele fica frente a frente com o tal monstro, por que ele não o matou como matou o piloto? E como dito, as pistas estavam ali para os futuros candidatos, em especial, os dois lados do jogo que o próprio Locke apresentaria para Walt. O monstro queria que o Locke tivesse a fé de encontrar o javali, e Locke não desacreditou, pois viu que a ilha foi um lugar transformador para ele, assim como seria para todo mundo.
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White Rabbit

Lost

“Semana passada a maioria de nós éramos estranhos, mas agora todos estamos aqui… E só Deus sabe quanto tempo passaremos aqui, mas se não pudermos VIVER JUNTOS, vamos MORRER SOZINHOS.”

Jack Shephard Lost

Como esperado de um homem da ciência, Jack não reage ao monstro da mesma forma e começa a surtar ao buscar uma explicação racionalizada para estar o enxergando na forma de seu pai morto que estava no avião, informação escondida da vez no EPISÓDIO 5, como a de Locke ser cadeirante, para dar ressignificado ao surto que o personagem passa durante o capítulo. Na ilha o propósito da missão também se assemelha, é uma busca agora por ÁGUA, ao invés de comida, mas no caso Jack não exatamente se candidata a procurá-la, mas vai em busca das respostas sobre o pai, lutando contra a sua cabeça que acha aquilo real, mas cético de que não passa de uma alucinação – olho o duplo sentido do J. J. –, enquanto na sua falta o acampamento começa a criar um círculo de tensão e guerra por recurso.

Locke logo percebe esse desequilíbrio e auxilia Jack a chegar no seu suposto destino, ele sabe que o médico representa o outro peão do jogo em que a ilha os colocará, e que mesmo descrente, sua personalidade forte é devidamente estabelecida, tanto no acidente do avião e em Tabula Rasa, quando ele faz de tudo para salvar o policial, quanto no início do próprio White Rabbit, em que ele se arrisca a se afogar para salvar Bonnie (Ian Somerhalder) e outro figurante de morrerem afogados, era fundamental para o grupo se manter unido como a ilha queria. Em episódios seguintes isso é só reforçado, All the Best Cowboys Have Daddy Issues mostra que um dos motivos para Jack estar tão atormentado ao se deparar com o pai (John Terry) é porque indiretamente ele tinha uma parcela de culpa em sua morte, pois na sua personalidade de “bom moço” era tão forte que falou mais alto do que segurar uma simples mentira para o pai não perder a licença médica, após um erro fatal numa cirurgia que realizara bêbado.

Essa jornada de crença e descrença vira uma dualidade no personagem de acaso ou propósito, ele é severamente punido com isso ao sempre ter que tomar as decisões mais difíceis, por exemplo, nos episódios seguintes ser soterrado na própria caverna que destinava a encontrar naquele momento de falta de recursos, uma tragédia que serviu para alavancar o Charlie, mas que também deveria ser um aviso ao Jack, que segundos antes tinha encontrado as suas peças, aquelas mesmas de Locke em dois corpos na caverna. Somente tempos depois é que saberíamos realmente do que se tratavam, mas visualmente estava ali, e a justaposição da organização de destinos inicialmente traçava esse caminho, entretanto nós ainda não percebíamos por completo, já que Jack era a principal referência para o ponto de vista do público. Logo, nas primeiras temporadas, ao não ter noção do que viria pela frente, nos sentiríamos como ele, questionadores, mas sobretudo céticos de que existiam explicações científicas para tudo, e lógico, a série iria aproveitar isso para nos ludibriar novamente.
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Os Outros

“We not alone.” Lost

Sayid Jarrah Lost

Falado dos dois polos principais, é preciso mencionar “Os Outros” – personagens e literalmente. Contudo, vamos por partes, retomando um pouco de Charlie e Kate, talvez os primeiros rendidos à transformação da ilha depois de Locke, ao menos em primeiros passos, não à toa foram os primeiros personagens a ter destaque no piloto. Kate no sentido mais interno, a personagem tem uma espécie de filler só para a abertura de uma maleta que tinha algo especial para ela, um avião, que mais tarde se revelaria como um artefato importante pois remetia ao seu amor de infância. Um amor que sobretudo a humanizava e criou sua índole “fugitiva” pois no momento em que ela não nega a ele se juntar a sua fuga da polícia, ele morre. Logo, a personagem cria um medo de envolvimento com outras pessoas, a fuga se torna mais simbólica, e aquele avião ganha esse significado, principalmente depois da ilha e queda do Oceanic, que aos poucos traçaria o mesmo caminho à personagem.

Charlie, por outro lado, lutava contra o vício em heroína, auxiliado por Jack e John, rapidamente ele consegue passar pela crise de abstinência e criar a primeira relação íntima de proximidade da ilha fora os familiares, com Claire (Emilie de Ravin), justamente algo que viraria um novo desafio para o personagem, entretanto seu demônio passado foi um dos primeiros a ser parcialmente batido. Sayid (Naveen Andrews), no entanto, demonstrava o caminho contrário, e a ilha parecia ter novamente despertado suas obscuridades, era o personagem com o passado mais sombrio dali, e isso é cirurgicamente demonstrado na mesma lógica de ocultação de informação para um mistério com outro personagem: Saywer (Josh Holloway). Em seu primeiro flashback, era justamente ele esse cara das trevas, um vigarista que teria feito um pai matar a mãe de uma criança? Nada, Sayid a tortura para revelar isso, mas no fim, Kate percebe que a carta da criança era uma carta que Sawyer mesmo escreveu para algum vigarista que fez isso com sua família.

Envergonhado, Sayid sai numa jornada própria, coincidentemente encontra a francesa do rádio de comunicação, vulgo Danielle Rousseau (Mira Furlan), e descobre que existem “outros” habitantes na ilha, não à toa, a partir dali esse jogo do J. J. Abrams fica mais explícito para o público. Ao mesmo tempo em que Sayid foge na floresta escutando vozes, no acampamento – no fantástico Raised By Another – Claire parece ser atormentada por alguém, Jack não acredita, lógico, pensa serem alucinações de uma grávida estressada, mas logo depois de uma simples checagem na lista de passageiros, Hurley (Jorge Garcia) descobre que um deles não estava no avião, quando Sayid chega para alertá-los já era tarde. O sequestro de Claire e Charlie, que estava com ela – aquele novo desafio do personagem que mencionei –, é um dos momentos mais grandiosos da temporada, não só pelo fato de ser a primeira aparição dos “Outros”, como pelo link do flashback, uma das sacadas certamente mais explosivas dentre todos os personagens, justamente por lidar diretamente com essa brincadeira de destinos, afinal, o que representa melhor isso do que um vidente (Richard Malkin)? E um vidente que estava certo e manipulou essa certeza para Claire ir para a ilha – surtos de paranoia!

Sem contar os momentos posteriores, a quase morte do Charlie numa demonstração incrível da funcionalidade da fórmula, pois antes da derradeira cena, Charlie viria a ser, como dito, o primeiro transformado pela ilha explicitamente, salvando Jack na caverna e saindo do vício em maconha, ou seja, era um dos primeiros personagens por quem nos afeiçoamos fora os dois pilares. Jack, inclusive, revisitaria o sentimento de culpa pela situação, por não ter acreditado, e em seu primeiro ato de fé, esmurra Charlie sem desistir para salvá-lo, em uma cena que emocionalmente foi toda muito bem preparada, e por ser ainda no início, ficava difícil saber se a morte iria acontecer ou não. A trilha de Michael Giacchino aglomerava esse balé do roteiro em uma orquestra de sincronia sentimental entre nós e os personagens, para construir a primeira de muitas cenas emocionalmente inesquecíveis.

Outro que lida diretamente com isso de destino é Hurley e sua icônica maldição com os números 4, 8, 15, 16, 23 e 42, ligados intrinsecamente ao motivo de Rousseau e ele próprio irem para a ilha. As conexões entre os personagens nesse momento já estavam sendo mais claras, contudo, assim como Claire, nesse tal destino existia ainda um pretexto científico, respaldado no motivo dos “Outros” quererem os bebês dela e de Rousseau, fora a motivação de sua expedição que não estava completamente comentada, mas em essência, os números são signos, como tantos outros elementos apresentados agora – as pedras – e que ainda seriam, pistas para a criação da mitologia posteriormente. De fato, não há como negar que tudo nessa primeira temporada tinha um respaldo mitológico concreto, por exemplo, Walt e sua mística compreendiam a função mais científica e proliferação de mistérios alheios do que exatamente uma resolução como personagem em si.

Walt e, naturalmente, Michael (Harold Perrineau) eram personagens dentro das linhas de teste do J. J. que só se amarrariam melhor na frente, pelo menos um deles, quando Lindelof enxugasse os movimentos dramáticos que não deram tão certo. Outros que caem nesse terreno são Jin (Daniel Dae Kim) e Sun (Yunjin Kim), que inicialmente se comportam como um relacionamento abusivo naquela intenção de máscaras do roteiro, o que não faz sentido, pois fica a impressão de que a toxicidade surgiu somente na ilha, ou por problemas alheios do trabalho de Jin que não exatamente tinham conexão. Isso é um problema corrigido à frente, mas nesses episódios iniciais é levado como um plot principal, ao menos fica a base de personagens falhos, para quando a transformação se concretizar, a jornada ganhar coerência em sentido macro. Por fim, os irmãos Bonnie e Shannon (Maggie Grace) têm o flashback mais alheio da temporada, tanto que são uns dos últimos personagens a ganharem. Parece proposital, já que nos disfarces eles literalmente parecem outras pessoas imediatamente melhoradas, que evoluem bastante rápido somente na reta final com respectivas conexões com Locke e Sayid. Eram, digamos, os testes com resoluções prontas, tanto que um deles já dá adeus à série antes mesmo da season finale.
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Exodus

“Você acha que estamos sendo punidos?” – Sun-Hwa Kwon Lost

“Punidos pelo quê?” – Shannon Rutherford LostLost

“Pelas coisas que fizemos, pelos segredos que guardamos, pelas mentiras que contamos.” – Sun-Hwa Kwon

“Quem você acha que está nos punindo?” – Shannon Rutherford LostLost

“O destino.” – Sun-Hwa Kwon Lost

Passados inúmeros e individuais mistérios e composições dramáticas, a série precisava encaminhar no final de temporada alguma recompensa, ou no mínimo uma demonstração mais clara de que havia perspectiva para o futuro da história, de que havia esse planejamento que tanto defendo. Pois bem, antes do quase longa-metragem Exodus, destaco dois episódios decisivos para o que a série resguardava. O primeiro é o Outlaws, focado em Sawyer e sua vontade de vingança que indiretamente o levou à ilha. Dos personagens considerados principais, Sawyer foi o único a não ganhar de primeira essa tipificação de flashback caracterizada pela motivação da ilha, propositalmente, para quando ele ganhasse, numa jornada de conflito interna bem parecida ao que John e Jack tiveram nos comentados Walkabout e White Rabbit, a série pudesse revelar seu arsenal futuro: as conexões arbitrárias pelo passado.

Se Jack mais atrás via o monstro na forma de seu pai, essa escolha não era aleatória, como demonstraria o futuro. Sawyer seria o primeiro de muitos personagens a cruzar o caminho de Christian, que nesse caso indiretamente o influenciou a tomar atitude de ir matar o suspeito de ser o assassino de sua família, por uma conversa de bar. Mais tarde, em Exodus, ele compartilharia isso com Jack, algo que transformaria a relação dos dois de lá para frente, e obviamente não seria a única vez em que personagens estariam conectados também pelos flashbacks. O segundo capítulo seria Deus Ex Máquina, que representativamente falará que a jornada não será fácil, pois até Locke, que teoricamente estaria à frente de todos em entendimento da ilha, basicamente é quebrado por ela na busca do propósito da escotilha, o grande gancho para a próxima temporada. E a ilha demonstra que um simples ato de falta de fé traz consequências, é nesse episódio que Bonnie morre, ou melhor, mais precisamente no próximo, que tem sua bela despedida.

Exposto, Locke irá precisar revelar a sua localização, que vinha escondendo até então por orgulho, e assim se inicia a divisão de núcleos para o gran finale. Michael, Jin e Sawyer, cada um com suas motivações, querem fugir da ilha por uma balsa, perto de terminar dá problema, todos precisam se ajudar para saírem dali, ao mesmo tempo, Rousseau chega informando que “Os Outros” estão vindo, a escotilha então surge como uma oportunidade de fuga, mas era preciso explodi-la. A própria Rousseau leva Jack, Kate, Locke, Hurley e o inesquecível Arntz (Daniel Roebuck) – que vira picadinhos – para o encontro de dinamites em um antigo barco – Black Rock, importantíssimo mais à frente, planejamento: check –, e depois volta para inesperadamente capturar a filha de Claire – sim, de novo, só que dessa vez ela já tinha dado à luz –, criando um novo núcleo com Sayid e Charlie – detalhe que se diga, matou Ethan (William Mapother) em outro episódio, sendo esse o outro desafio que mencionei por qual passaria –, que correm em busca dela, em direção à fogueira na qual estariam os outros.

E nessa tríade de narrativas forma-se uma trinca de episódios que juntos geram um filmaço, emocionante e gigante, em escala. Quem dera Vingadores chegar perto desse evento, uma season finale revolucionária, basta perceber o que seriam os episódios finais de temporada das séries depois de Lost, e olha que esta ainda é a menos emblemática em comparação ao que seriam as outras. Ainda assim, momentos inesquecíveis como a primeira aparição física do monstro – se ele apareceu ainda no primeiro ano, já haviam planejado sobre ele, não? –, a cicatrização da ferida de Charlie, a emocionante e humana partida da balsa com todos comemorando a liberdade para a trágica captura de Walt ser ainda mais sentida, e lógico, o gancho final, a descoberta de um novo mundo debaixo daquela escotilha, tatuada com os números que levaram até a ilha.

Contudo, nenhum desses representa mais para a série do que o agrupamento de flashbacks dos personagens antes da viagem, as primeiras conexões. Se o prisma do piloto invocava aquela viagem como uma tragédia, em seu último episódio, entretanto, Lost já demonstrava uma outra perspectiva para aquilo, em uma das últimas cenas após o bebê de Claire ser enfim recuperado, e depois de ter mostrado um pouquinho antes o trajeto de cada um para o embarque, um flashback mostra todos se juntando antes do avião decolar, trocando olhares inocentes, a linda trilha valoriza aquele momento como único, porque de fato é. Depois dali, suas vidas estariam para sempre transformadas, o destino – como Sun diz mais atrás –estaria os “punindo”, mas não exatamente com a desgraça, e sim com a oportunidade de se livrarem dela com a criação de vínculos a serem eternos.

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E no final das contas, esses vínculos não seriam só entre eles, mas também entre eles e nós, que depois de passar tanto tempo investidos em conhecer as histórias particulares, àquela altura no mínimo compreendíamos todos, e no ideal torcíamos pelo bem de cada um, torcíamos pela transformação, pela união deles, que seria no fim a jornada da série. Por que acham que ela gastou tanto tempo em contar cada detalhe daquelas vidas problemáticas? Enrolação? Filler? Me poupe. Lost sabe do nosso interesse pelo desconhecido e nos fisgou com conceitos misteriosos e dúbios de nossa relação existencial, contudo o anzol chegaria na pessoa, nas pessoas, naqueles personagens e nas conexões que conseguimos estabelecer com eles, principalmente em seus propósitos. É por isso que sua história é digna de ser contada, mesmo que em vinte e cinco episódios numa só temporada, não importa, cada detalhe, cada momento, se não deu pistas para a mitologia, se não proporcionou manipulações absurdas de continuidade ou reviravoltas inesperadas, contribuiu para algo maior, uma intimidade humana com o ficcional que nenhuma outra série de TV jamais conseguiria igual.

Lost – 1° Temporada (Idem / EUA, 2004-2005)
Criador(es): Damon Lindelof, Jeffrey Lieber, J. J. Abrams
Diretores: J.J Abrams, Jack Bender, Kevin Hooks, Michael Zinberg, Babby Roth, Tucker Gates, Greg Yaitanes, Marita Grabiak, Stephen Williams, Rob Holcomb, Chandra Wilson, Daniel Attias, Robert Mandel, David Grossman.
Roteiristas: Damon Lindelof, Jeffrey Lieber, J. J. Abrams, David Fury, Christian Taylor, Javier Grillo-Marxuach, Jennifer Johnson, Paul Dini, Lynne E. Litt, Carlton Cuse, Drew Goddard, Leonard Dick, Brent Fletcher, Janet Tamaro, Edward Kitsis, Adam Horowitz.
Elenco: Matthew Fox, Terry O’Quinn, Evangeline Lilly, Jorge Garcia, Josh Holloway, Naveen Andrews, Dominic Monaghan, Yunjin Kim, Daniel Dae Kim, Ian Somerhalder, Maggie Grace, Harold Perrineau, Emilie de Ravin, Malcolm David Kelley, L. Scott Caldwell, Mira Furlan, William Mapother, John Terry, Richard Malkin, Daniel Roebuck
Duração: 43 min. (em média) cada episódio – 25 episódios na temporada.

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