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Crítica | Lost – 3ª Temporada

por Iann Jeliel
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Lost

  • PODE CONTER SPOILERS DE TODAS AS TEMPORADAS! Leia, aqui, as críticas de todo nosso material do Universo Lost.

Lost WE HAVE TO GO BACK!

Jack Shephard

Em linhas gerais, Lost sempre trabalhou sua linguagem através de inversões proporcionadas por paralelismos, que ao longo das temporadas ganhariam escalas cada vez mais épicas e derradeiras ao intensificar o poder de seu bem mais precioso: (não são os mistérios) os personagens. Se da primeira para a segunda, essa inversão era bem sutil, aqui na terceira ela é quase imperceptível à primeira vista, pois literalmente é segurada até a última cena. Até lá, ela se comporta como uma evolução do que vinha sendo na segunda, em suma, convertendo os mistérios e os direcionando para novas camadas dramáticas nos personagens.

Analisando calorosamente dá para alegar que muitas dessas camadas estavam fechando ciclos específicos, mas na verdade esses ciclos fechados buscavam de uma vez por todas quebrar o conceito da caixa misteriosa idealizada por J.J. Abrams. Para isso, o próprio retornou no primeiro capítulo para o gatilho de quebra, que seria então desenvolvido mais tarde por Ben, a motriz caótica da narrativa. A partir desse personagem, Lost assume que essa linha de mistérios faz parte somente de um jogo de manipulações motivacionais gerados pela vontade de enxergar um propósito dentro de uma mitologia, aquela que estava sendo somente sugerida, e agora é exposta cara a tapa que existe e é muito maior do que meros segredos conspiratórios feitos sob medida para vender a atenção.

Tanto que olhando friamente a temporada já não esconde mais nada, pelo contrário, ela vai contando tudo o que vai acontecer e usa nossa suspensão de descrença, já manipulada e acostumada com a formulação anterior a crer que não é aquilo, para surpreender quando acontecer. Uma mentira baseada na verdade, conceito que é pensado em forma micro, média e macro. A micro é dentro do episódio em particular, que como dito fecha um ciclo sintomático de um personagem teoricamente ainda em processo de redenção na ilha, gerando uma desconstrução ali em específico que cria um falso conforto no público mediante ao afunilamento de tramas. Aí entra o pensamento médio, da temporada, que dentro desses processos micros – muitos até acusados de fillers por se fecharem muito entre si – avança e resolve coisas até de mais, preparando uma escapatória precocemente, algo que hipoteticamente deveria estar reservado para o fim.

E então, o pensamento macro se confirma, com uma subversão, todos os processos acumulados nas três primeiras temporadas são reinterpretados e ressignificados, sem jamais negar ou deixar incoerente o que foi feito. É a mentira (o fim prometido para ser ali) baseada na verdade (foi realmente ali o fim, de uma premissa, de um método, de um ciclo), e a série então desafiaria seu público a níveis poucas vezes visto na história da TV, formando um divisor de águas inconfundível. Uma mudança tão ousada e radical que pensando na mentalidade de canal aberto, possivelmente as pessoas não estavam preparadas, seja pelo timing perdido de acompanhar esse processo semanalmente, em que os detalhes do processo de mudança se diluíam através da pouca memória do que havia sido apresentado em semanas anteriores, anos anteriores, seja pelo costume criado pelo conceito base introdutório, que mais tarde só iria fazer mal ao feedback da série.

Tanto que alegam que depois daqui a série “se perdeu”, sendo que na verdade ela mostrou como encontrá-la, aliás só nesse processo evidenciado nessa temporada foi suficiente para falarem isso, um completo absurdo, justificado perante as circunstâncias que ela desafiou. Infelizmente, falam que a maior influência que Lost trouxe veio da fórmula viciante que inúmeras outras séries populares posteriores usaram, o que não deixa de ser um fato, mas essa influência deveria ter vindo de sua impressionante e corajosa capacidade adaptativa em corresponder planejamento mutável a enormes demandas, com autoria, fazendo o que acredita, como acredita e nunca se confortando ao fácil que era pedido, ao entregue de bandeja pelo puro e simples prazer da resposta. Não, ela queria mais e fez mais, e até hoje, nenhum grande fenômeno correspondeu substancialmente a Lost porque não teve a mesma coragem, nem a capacidade dramatúrgica para sustentar as próprias escolhas.
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Jack, Kate e Sawyer vs “Os Outros”

“A única coisa que colocamos dentro de você foi a dúvida.”

Benjamin Linus

Falando em escolhas, admito que a volta de J.J. à série – mesmo que por um episódio – não é das melhores, e ela é especialmente sentida na primeira parcela de episódios, que tenta de algum modo replicar a justaposição de um mesmo acontecimento sob vários pontos de vista da segunda temporada sem o mesmo impacto. O início é igualzinho, uma cena sem contexto feita para desnortear o público da dúvida de ser ou não um flashback e de quem, para depois oferecer a real perspectiva que dava a resposta parcial do último mistério deixado para trás, no caso, onde raios moram esses “Outros”? É legal ver que eles evidenciavam a queda do avião, ver que eles moravam em uma cidade escondida como uma civilização normal, e mais tarde, ver como eles tiveram acesso às informações de todos os passageiros pelo contato com o mundo exterior.

A questão é na forma, sempre na forma, e nesse primeiro episódio, há um clima bem descabível de teorização, ocultação de informações, duplo sentido… enfim, todas as características utilizadas na introdução da série e que não tinham mais espaço nesse momento, mesmo que seja de algum modo uma nova introdução ao universo de perspectiva dos “outros”, fica uma sensação de enrolação, pelo menos até suas pontas gratuitas serem amarradas no futuro (como o porquê de Sawyer e Kate estarem quebrando rochas: para fazer uma pista de aterrissagem). É problemático porque não combina com a decupagem geral da temporada, que começa a se revelar nos flashbacks de redenções parciais intuitivas para o presente ou pelo passado.

O primeiro com o Jack no próprio A Tale of Two Cities (sobre aceitar a esposa estar melhor com o outro), seguido de Sawyer em Every Man for Himself  (transferindo o dinheiro de seu golpe para a filha que não podia cuidar) e culminando em Kate em I Do (não querendo fugir mais para viver seu romance – a teimosa iria fazer isso de novo, só que na ilha), onde finalmente o núcleo pega fogo graças, não ironicamente, ao triângulo amoroso. E aí entra a motivação do sequestro desses personagens ao final de Live Together, Die Alone, Ben com as fichas e estudo comportamental sabia que as fragilidades de cada um do trio estavam ligadas a como eles se gostavam, descoberta oriunda da capacidade de se comunicar com o mundo exterior, revelação que será o sustentáculo da nossa atenção e para os três personagens caírem na lábia de Ben, que precisa motivar Jack a fazer uma cirurgia de emergência de um tumor em sua vértebra.

Na prática esse jogo manipulativo talvez não precisasse durar tanto, mas ao menos o tempo gasto foi devidamente recompensado no alinhamento causado pela ambiguidade de Juliet, nova personagem, membro do “culto”, que seria ainda o implante da dúvida em nossa cabeça só pelo fato de termos consciência de seu ponto de vista. Em Not in Portland, episódio dedicado a sua introdução, temos pela primeira vez, de muitas, um episódio destinado a dar respostas, mas ao contrário do óbvio, elas eram pensadas em segundo plano de um artefato dramático, que no fim seria engrenagem para a dúvida continuar, mesmo que os fatos estivessem evidenciados. Sim, é um episódio que se passa depois dos eventos extraordinários da chantagem de Jack com “Os Outros” para conseguir fazer com que Kate e Sawyer escapassem, e justamente aí que ele se posiciona perfeitamente para completá-los em sentido motivacional, fora o bônus de mostrar o processo de recrutamento à ilha, introduzir Richard e fechar o raciocínio do porquê de Claire ter sido raptada anteriormente devido aos problemas de fertilidade na ilha.

Se as decisões de Juliet pareciam tão arbitrárias, o arco com sua irmã, que a motivou a ir à ilha, esclarece que ela foi e, naquele momento, não aguentava mais ser uma vítima das mentiras de Ben. Ela própria estaria encaminhando sua redenção, mesmo que nesse caso, a série seguraria ao máximo a exposição para propor movimentos climáticos de ação à temporada. Jack com sua ajuda se sacrifica de coração partido ao ver Sawyer e Kate juntos numa das câmaras da jaula, e se une a Ben para cuidar dele no pós-cirúrgico com a promessa de poder sair da ilha junto da própria Juliet – com quem começa a construir uma mini relação,  importante para dar ao próprio Jack uma ambiguidade no futuro e maiores conflitos. Infelizmente, mal sabia ele que os planos do homem da fé o impediriam.
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Locke ou Ben – Quem é o “especial”, afinal?

“Vai começar a falar da caixa mágica de novo?” – John Locke Lost

“Não, John… eu vou mostrar o quê dela.” – Benjamin Linus Lost Lost

Do outro lado do núcleo da última season finale, tínhamos Locke e Mr. Eko em uma batalha contra apertar ou não o botão que traria consequências para ambos os lados da moeda. Para quem estava certo, no caso, Eko, a ilha/o monstro de fumaça não perdoaria, já que seu uso estava renegado a dar a força de vontade a John novamente, que era uma peça mais frágil de ser manipulada pelo monstro, enquanto ele, seguro de si – na proposta subversiva de rápida redenção que a temporada vem trabalhando -, renega se arrepender do que fez no passado pois entende que aprendeu com ele (olha só a metalinguagem da série), e isso acaba sendo sua sentença de morte no momento mais anticlimático possível.

Digo isso porque antes de matá-lo, Locke teria a sua interligada ao propósito de salvá-lo da caverna do outro Urso Polar que havia na ilha – em Further Instructions é mencionado que as jaulas em que estavam Sawyer e Kate na estação Hydra eram onde eles ficavam para serem experimentos da Dharma para testar as propriedades da ilha. Na prática, seria apenas uma ponte para que ele pudesse traçar o caminho da cidade dos “Outros” – da primeira cena da temporada – e junto a Kate e Sayid, se infiltrar lá para salvar Jack. Entretanto, além de Jack não querer ser salvo – pois já estava com a passagem de volta encaminhada –, Locke também não queria resgatá-lo, pelo menos não mais quando descobre com Mikhail na estação de comunicação que eles tinham a capacidade de sair da ilha quando bem entendessem por um submarino. Com a fé recuperada e a motivação muito previamente estabelecida, Locke então explode o submarino e apimenta ainda mais o conflito ideológico entre ele e Jack, mas isso estava guardado para o momento certo.

A temporada estava mais interessada em desenvolver o Locke através de Linus, em um paralelismo direto com o “tempo de recuperação” de ambos na ilha e mais… Ao adentrar em seu passado, no excepcional The Man Behind the Curtain, descobrimos que as origens dos personagens têm correlações, personalidades inseguras que encontram na ilha um suposto propósito especial, o que os torna extremamente vaidosos. Essa vaidade leva Ben a tentar um novo golpe manipulativo em Locke com medo de ele ser mais especial para a ilha, desta vez de forma mais direta, ele o convida para fazer parte da comunidade, mas só se conseguisse passar por um teste: matar o próprio pai (por sinal, Locke se deparar com ele na ilha foi um dos grandes twists da temporada). É evidente que ele sabia que Locke não conseguiria, conhecendo seu histórico de dependência da paternidade e o quanto de influência o fantasma do golpista tinha sobre ele, algo contado em cada flashback do personagem desde Deus Ex Machina, sua falta de desprendimento da figura paterna, apesar de tóxica, custou-lhe um rim, a namorada e a capacidade de andar.

Entretanto, como vinha sendo demonstrado desde quando surgiu, Ben não tem poder algum, sua pompa é criada à base de encenações, cada percurso novo que ele planeja é situado numa sobreposição de mentiras para manter qualquer situação sob o seu controle. Em seu flashback é desmentido, por exemplo, que ele nasceu na ilha, e que no mínimo Richard (que não envelhece!?) está à frente na hierarquia de conhecimento sobre os detalhes da mitologia. Inclusive, essa hierarquia é confirmada um pouco antes quando Richard oferece a John a informação que irá fazê-lo passar no teste, indicando a correlação de seu pai como aquele golpista que fez os pais de Sawyer serem mortos (outra revelação absolutamente bombástica). Influenciando Sawyer a realizar sua vingança em um dos grandes episódios da série, The Brig, John cumpre sua missão e desarma Linus totalmente, cai a máscara que seu conhecimento é também uma farsa.

Nos pormenores, Linus manipulava inclusive seu próprio povo para satisfazer o ego do “se sentir especial”, ele mentia sobre ser o único a ter acesso a Jacob, o real “mandachuva” do pedaço – nesse tempo, não se sabia ao certo se sua existência era verdade, como a série já acabou, já adianto, é bem verdade – para poder segurar todos os recrutas na ilha, e quando essa pressão religiosa não funcionava, instaurava lavagem cerebral e hipnose para fazê-los acreditar em Jacob na marra. Algo demonstrado também em Not in Portland, onde Sawyer e Kate precisavam de um barco para sair da ilha da estação Hydra e conseguem através de Alex, filha de Rousseau, quando decidem ajudá-la a resgatar seu namorado Karl, que estava no processo de lavagem, assistindo a um vídeo com imagens psicodélicas e mensagens subliminares, uma delas, passada rapidamente, diz: “Deus ama você como amava Jacob”, comprovando a arquitetura de controle do Ben.

Como último recurso, Ben leva Locke a uma cabana misteriosa, onde diz que Jacob está – em outra temporada, comentaremos sobre sua real função – e começa uma última encenação como última e desesperada forma de manipulá-lo. Falho novamente, não só porque Locke não cai mais na lábia, como ele escuta uma verdadeira manifestação ali, o que leva Linus ainda mais ao desespero, ao ponto de querer matá-lo, atirando em seu peito e o jogando no mesmo lugar que havia jogado todos os corpos da iniciativa Dharma – algo contado em The Man Behind the Curtain. Na season finale, Locke é salvo pelo monstro na forma de Walt (por que Walt? Nunca saberemos), comprovando – junto ao acesso de algumas outras informações futuras – que a manifestação na cabana era o monstro também, e não Jacob, pois só assim faria sentido ele continuar vivo naquele momento para o alinhamento entre os personagens ficar totalmente coerente.

Se ambos se comportavam como os mais comprometidos junto a Eko com o jogo da ilha, é porque a fumaça estava os manipulando emocionalmente desde o início para se sentirem “especiais”, é ele que os recruta, mostra onde está o javali em Walkabout, aparece no corpo da mãe de Ben em The Man Behind the Curtain e vai direcionando os movimentos de todos dentro da camada já estabelecida de destino. Novamente, temos uma mentira baseada na verdade, onde a fumaça seria a intersecção do pensamento macro maior, que valeria para todas as temporadas e seria a amarra necessária para o roteiro dentro de um planejamento que poderia mudar e se adaptar a essas mudanças sem perder o sentido.
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Interlúdio, “Fillers” e a Importância Deles no Método

Lost

“Você faz sua própria sorte.”

Hugo Reyes (Hurley)

Apesar de defender veementemente o planejamento de Lost, é logico que nem tudo estava lá anotado desde o início a acontecer exatamente como foi, aliás é uma ilusão imaginar que isso acontece de maneira absoluta em qualquer série, especialmente as exibidas em TV aberta. Muitas decisões são tomadas no meio do percurso, e algumas, principalmente nesta temporada como divisor e definidor do futuro da série, tornam-se mais explícitas, o que não necessariamente é ruim – mesmo que traga problemas – pois com eles o método de transformações de linguagem pode ser compreendido, para poder ser acompanhado de forma justa.

O mais óbvio e único exemplo que enxergo como defeituoso nesta temporada é o controverso episódio da tatuagem de Jack, Stranger in a Strange Land. Até existe a tentativa de interconexões para torná-lo parte importante do projeto, mas o significado de “Ele está entre nós, mas não faz parte de nós” é convenientemente oportuno diante da situação em que Jack se encontrava no meio dos “Outros” para forçar essa conexão, e com isso aquele episódio se fecha exclusivamente no próprio ciclo e se torna desnecessário dentro do contexto pois não apresenta elementos futuros aproveitáveis. Tem até a revelação de Cindy – que fazia parte dos sobreviventes da cauda e foi raptada junto às crianças também presentes no episódio -, mas esse fato nunca teve qualquer influência dramática na série inteira, pelo menos é completamente irrelevante nesta temporada.

Perceba, então, como a reunião adaptativa da série funciona e por que Lindelof trabalha com pontas de virada sempre bastante soltas, não é experimental pois a intenção é de coletá-las como influências de arcos dramáticos próprios na fórmula de mistério para personagem. Ao menos, esse episódio engana comparativamente em linguagem com os outros flashbacks, todos intencionados – como dito algumas vezes – na redenção precoce de um personagem (citando alguns exemplos esporádicos: Sayid é torturado por alguém que já tinha torturado, mas é poupado para que não se torne mais quem era; Claire admite para mãe em coma a culpa do acidente de carro que a deixou daquele modo; mesmo com a infertilidade de Jin, ele consegue ter um filho com Sun por influência da ilha, além de no passado ele ter poupado a vida do amigo com quem Sun o traía; Juliet, depois de sofrer tantas perdas de mães, pode dar a notícia a Sun de que o filho era realmente de Jin; dentre outras), todos, menos o de Jack, e isso acaba sendo sigilosamente importante para o efeito de enganação do que vem ao final.

Em outros casos, estabelecem mais diretamente conexões passadas que fortalecem a ideia de união pelo destino (Claire é irmã do Jack, Kate conheceu a namorada de Sawyer, a já mencionada do pai de John que é o golpista que arruinou a vida de Sawyer) ou somente um elemento convergente com o histórico temporal da ilha. Como acontece em Tricia Tanaka is Dead, o famoso episódio da van de Hurley, que parece a princípio completamente banal, mas isoladamente funciona de maneira apoteótica, pois conversa demais com o discurso explícito da quebra de pendências, literalmente, quebrando a maldição dos números e as ressignificando, uma vez que foram eles que levaram-no a ilha para ser quebrada perante a fé no companheirismo. Um episódio reconfortante para toda a tensão inicial, e completamente útil no futuro – pelo link com The Man Behind the Curtain, sendo aquele esqueleto o pai do Ben e pela sua utilidade no clímax futuro -, podendo até se classificar como um interlúdio se outro episódio não admitisse esse rótulo mais abertamente.

Exposé vai literalmente EXPORsé (perdão pelo trocadilho) toda a lógica por trás do método de planejamento da série, e por mais filler admitido que fosse, ele é primordial para compreender para qual linguagem subversiva a série estava se preparando, especialmente pensando num exercício de metalinguagem. É muito na cara, personagens e contextos que não estavam ali como um passe de mágica sendo interligados pelas histórias de figurantes de luxo, introduzidos como sempre estivessem ali desde o início. Se era algo no mínimo estranho, principalmente com olhares brasileiros orgulhosos de Rodrigo Santoro estar escalado no elenco, essa estranheza é proposital para que no jogo de conexões surpreenda em coerência, especialmente em aspectos de recriação da produção. O flashback é a resposta do presente em que outros personagens, os protagonistas, tentam desvendar – a estrutura base do show – e no fim não conseguem porque não importa tanto, eles vão dar memória aos dois por pensarem que estão mortos, quando NÃO ESTAVAM. Subversão simbólica proporcionada pelo desvio de um ponto de vista, foi assim na primeira cena, foi assim na cena do meio, será assim também na última.
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Desmond e o Verdadeiro Destino

Lost

“Eu fico salvando sua vida. E o que adianta? Vai continuar acontecendo de novo e de novo… Talvez seja por isso… Talvez seja um teste.”

Desmond Hume

Antes de comentar a finale, precisamos falar sobre a constante de organização do universo da série: Desmond. Em Flashers Before Your Eyes, sua lógica pela primeira vez seria comentada fisicamente na série, mas já funcionava assim de forma simbólica na temporada anterior, visto que a lógica do destino interligado de todos era toda circundada e proporcionada por ele. Foi ele que não apertou o botão que fez o avião cair na ilha e, consequentemente, formar toda a teia de conexões motivacionais de cada um para ficar ou querer sair. Foi ele que trouxe a solução da última season finale, entregando o barco que motivou Jack, Kate e Sawyer a seguirem o plano e serem capturados, além de ser quem assumiu a responsabilidade depois do Locke não apertar o botão da escotilha, forçando a absorver toda a energia eletromagnética e com isso se tornar uma anomalia temporal.

Sua CONSCIÊNCIA passa então a viajar no tempo de forma irregular (alô, 5ª temporada!). Em seu episódio, por exemplo, ela volta para o momento em que ele tomou as decisões que o levaram à ilha a fim de colocá-lo em um teste. A primeira evidência disso está no elemento que o faz começar a desconfiar dessa mutação: um encontro com Charlie. Na ilha, depois de sua consciência voltar ao presente, ele receberia diversos avisos sobre como Charlie morreria, forçando-o a tomar uma atitude para tentar impedir o sacrifício. Pensando na questão dramática de Desmond, sua grande motriz motivacional de redenção está na incessante busca contra a covardia. Em outro flashback, antes mesmo da Penny, ele já havia fugido de outra paixão, que o fez fugir do papel de monge, sendo demitido por não assumir certas responsabilidades, o que no fim o levou a Penny e a todo o percurso já conhecido.

Então, ao salvar Charlie, ele no fim das contas desafia a noção de destino para reinterpretar o destino que achava que tinha. E o melhor é que essa noção de previsões acaba por falar muito também da linguagem da série no agora e de como ela se inverterá logo em breve, sendo outro elemento do pensamento macro que equilibra a coerência da mudança. A própria lógica da sequência de flashs é simbolicamente parecida com a estrutura, uma pequena informação parcelada em peças de um quebra-cabeça que só precisam ser encaixadas no devido lugar, não têm segredo, mesmo assim, no costume e na forma, surpreendem pelo caráter expansivo de mitologia. E a série faz tudo isso sem abandonar seus didatizadores, Locke era esse que estava à frente na primeira temporada, na segunda e terceira seria o Ben, e para esse conceito específico do Desmond, surge Eloise, a senhora misteriosa da joalheria como conhecedora e organizadora mãe dos futuros capítulos envolvendo a mistura dessas noções temporais do destino.

Inclusive, essa interligação com Charlie engloba-o perfeitamente dentro da lógica de redenção, uma vez que era o único personagem antes dela ter sido instaurada que havia completado esses processos (tirado do vício em heroína, apaziguamento e romance com Claire correspondido e desculpa com Sun, contando-a a verdade sobre o incidente de Sawyer com as armas nesta temporada). Então, tornou-se uma forma criativa de dar um novo propósito a ele na narrativa principal. Essa, depois de ter todo o panorama de personagens resolvidos, estava se concentrando no tão aguardado resgate, identificado pelas visões de Desmond com alguma relação com Penny – que na última cena de Live Together, Die Alone é alertada de uma anomalia eletromagnética pela sua equipe, a mesma proporcionada por Desmond com a explosão. Reunindo uma equipe de resgate para ver se a visão é correspondida, Naomi é encontrada, e a partir dali os eventos catalisariam naquele episódio…
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O Derradeiro Episódio

Lost

“Not Penny’s Boat.”

Charlie Pace

Como toda grande finale de Lost, Through the Looking Glass é um épico, um evento à parte, cuidadosamente construído desde antes para ser catatônico. No caso, as intersecções se misturam entre as três distintas narrativas principais que posicionei anteriormente: 1. Jack ambíguo por não conseguir escapar da ilha e se aliar demais a Juliet, igualmente ambíguo, salvando Sun e depois pretendendo sequestrar as outras grávidas do acampamento; 2. Ben começa a perder o controle de suas manipulações em clima dessa iminente guerra dos “Outros” com os sobreviventes; 3. Desmond encontra Naomi e o resgate, mas lógico que não seria tão fácil, e aí o sacrifício de Charlie se torna necessário. No meio-tempo antes da convergência, bastante coisa é maturada, um conflito civil de desconfiança contra Jack, Ben tendo que contar mais mentiras para o seu povo que cada vez mais perde a confiança nele, além de um compilado emocionante dos grandes momentos da vida de Charlie, valorizando já de antes sua inesquecível morte.

No fim, as coisas vão se resolvendo e a escala cresce, Jack e Juliet assumem o lado, e o primeiro prepara a sua última e esperada redenção ao assumir o papel de liderança que lhe foi dado e guiar todos os sobreviventes rumo à torre de comunicação para conseguirem falar com o resgate, enquanto Charlie e Desmond descem na estação subaquática para retirar um bloqueio comunicacional instaurado para Ben, numa de suas mentiras inoperantes. Cenário pronto, a ação acontece, e de forma esplendorosa. São incontáveis acontecimentos marcantes (Jack espancando Ben, Hurley salvando geral com a van, “Eu te amo” de Jack para Kate etc.), conduzidos com o grau mais elevado possível de emoções, tensão, desespero, tristeza, euforia. A cada minuto algo mudava, surgia um novo desafio e então era superado por outra subversão otimista, despertando aos poucos um sentimento libertador junto aos personagens.

Mas algo estava errado, ou no mínimo estranho, a redenção de Jack estava clara em seu caminho no presente destinado a ser o líder responsável ao tirar seu povo da ilha, mas em flashback, nunca o vimos tão sombrio. Mesmo assim, desconfiamos que seja algo relacionado à continuidade de seu período de autoflagelação motivado por quaisquer motivos já apresentados: o pai (diversas vezes mencionado), a esposa (que aparece em participação), algum(a) outro(a) paciente que ele não conseguiu consertar (surge uma nova quando ele tenta se matar, além de um caixão de um desconhecido). Enfim, tratando-se do costume, até mesmo dentro da nova formulação da temporada, o máximo a se pensar era que de algum modo aquilo iria se subverter positivamente de alguma forma para propor a redenção, ou que não fosse positivamente, mantendo todo mundo na ilha pensando numa projeção de mais temporadas.

Eis que três cenas (duas em paralelo) redefinem COMPLETAMENTE TUDO. A morte de Charlie tão esperada acontece, mas não da maneira como imaginávamos. Com ela, viria um aviso de que aquilo não era bem um resgate, Ben até tenta avisar, mas era tarde depois de tantas mentiras. No último suspiro, Locke – salvo pelo Walt fumaça preta – redireciona novamente toda a simbólica guerra ideológica com Jack em uma encarada que definiria todo um destino… Locke não consegue tirar a vida de Jack para impedi-lo, e diante da apoteose da vitória, a consequência dela, no último minuto, seria então revelada. Não se tratava de um flashback de Jack quebrado, mas de um flashforward, um vislumbre afirmativo do FUTURO que o aguardava após SAIR DA ILHA. E os miolos iam para o teto! Em qualquer perspectiva, esse é um tipo de reviravolta dificilmente é replicável ou antecipável, e olha que ela não estava ali de graça para ser espertinha negando fatos consumados, ela só foi realizada por toda uma complexa construção de linguagem que a possibilitou e brilhantemente a encaixou no momento PERFEITO!

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Impossível a partir daqui sair de algum modo indiferente a Lost, e não é só pelo twist, mas por toda a divisão que representa para a série, por toda simbologia que uma atitude daquelas significava para a televisão daqui para frente, por todo seu poder de literalmente alterar qualquer caminho mal intencionado de aspectos micros, tudo colaborou para a grande e verdadeira encenação deixar todo mundo de queixo caído. A temporada até tem seus problemas, é verdade, mas isso é completamente irrelevante dada a recompensa de toda sua elaboração geral, um verdadeiro marco que passou à frente de uma emissora antes irredutível e provou de uma vez por todas que autoria, fama e inteligência podem conviver em harmonia.

Lost – 3ª Temporada (Idem / EUA, 2006-2007)
Criador(es):
Damon Lindelof, Jeffrey Lieber, J. J. Abrams
Diretores: Jack Bender, Stephen Williams, Paul Edwards, Tucker Gates, Paris Barclay, Eric Laneuville, Paul Edwards, Karen Gaviola, Frederick E.O. Toye, Bobby Roth
Roteiristas: Damon Lindelof, J. J. Abrams, Jeff Pinkner, Drew Goddard, Carlton Cuse, Elizabeth Sarnoff, Edward Kitsis, Adam Horowitz, Alison Schapker, Monica Owusu-Breen, Christina M. Kim, Jordan Rosenberg, Brian K. Vaughan
Elenco: Matthew Fox, Terry O’Quinn, Evangeline Lilly, Jorge Garcia, Josh Holloway, Naveen Andrews, Michael Emerson, Henry Ian Cusick, Elizabeth Mitchell, Dominic Monaghan, Yunjin Kim, Daniel Dae Kim, Adewale Akinnuoye-Agbaje, Emilie de Ravin, Rodrigo Santoro, Kiele Sanchez, L. Scott Caldwell, Sam Anderson, Sonya Walger, Nestor Carbonell, Mira Furlan, Tania Raymonde, M. C. Gainey, John Terry.
Duração: 43 min. (em média) cada episódio – 23 episódios na temporada.

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