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Crítica | Lovecraft Country – 1X02: Whitey’s on the Moon

por Ritter Fan
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  • spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios da série.

O poema cantado de 1970 que Gil Scott-Heron compôs e de onde o episódio tira seu título, além de embalar o clímax, explica tudo o que é necessário saber sobre o episódio: o tempo, o dinheiro e o esforço empregados no desejo frívolo de Samuel Braithwhite (Tony Goldwyn), líder dos Filhos de Adam, de chegar ao Paraíso seria muito mais útil para reduzir as desigualdades sociais e a terrível segregação causada pela América de Jim Crow, mas, claro, é muito mais interessante abrir um portal para o literal Jardim do Éden do que lidar com uma raça inferior, mas “razoavelmente inteligente para ser teimosa”, como a dona dos cachorros gentilmente explica. E se você tiver saído da experiência de Whitey’s on the Moon coçando a cabeça não acreditando no que acabou de assistir, bem… parabéns, pois parece ter sido bem essa a intenção de Misha Green.

Carregando no texto expositivo nos primeiros 20 minutos de projeção enquanto a trinca principal – ou pelo menos tio George e Leti – aproveita algumas horas de relaxamento causado pelo conforto de seus desejos realizados em seus respetivos quartos e na ignorância mágica do que aconteceu na noite anterior, o episódio camba perigosamente para a categoria de mistérios empilhados que demorarão a ser resolvidos. Mas essa impressão é dissipada completamente a partir da visita deles ao vilarejo e de um novo encontro com shoggoths que é interrompido com um apito e Christina Braithwhite (Abbey Lee) a cavalo. A partir desse ponto, o episódio aposta todas as suas fichas no sobrenatural tirado diretamente das páginas do pulp fiction e não olha para trás em hesitação, pedindo ao espectador que faça o mesmo.

E, mesmo que essa exigência não agrade a todos, devo dizer que ela é inegavelmente refrescante e divertida. Afinal, somente pela quantidade gigantesca de momentos nível hard de WTF – extração de fígado para servir de entrada em jantar do culto, alucinações individuais e reveladoras para nossos heróis, mágica sendo tratada como coisa trivial, o parto de um shoggothinho fofo que Christina faz tirando-o de uma vaca e depois acariciando-se como se fosse a coisa mais preciosa do mundo, tio George sensacionalmente usando as regras do clube dos homens brancos malucos contra eles mesmos – o episódio já merece ser prestigiado, especialmente considerando que o texto de Green não perde a crítica social em momento algum (“nem todos nós brancos queremos acabar com vocês”) e ainda consegue acrescentar uma camada estranha e desconcertante de humor, talvez pela surrealidade de tudo que vemos acontecer aqui.

Além disso, já ficou claro que a showrunner não está nem um pouco interessada em ser sutil. Ao contrário, ela terminou de abrir a porteira da insanidade ao lidar com um “plano celestial” que só o sangue de um indesejado homem negro, fruto, depois de gerações, do estupro da escrava Hanna (Joaquina Kalukango) pelo “benevolente” Titus Braithwhite, consegue levar à fruição. E que fruição! Afinal, como não abrir um sorriso quando Tic – talvez em razão da sugestão de Christina, que de certa forma se sente como ele – toma as rédeas da cerimônia e vira a mesa, transformando o pseudo-Adão e seus convidados em pó, fazendo a mansão desabar em seguida?

E não, não é para procurar “explicações” detalhadas para o que vimos aqui. Existe sim uma lógica interna, mas ela é meteórica e menos importante que o todo. O que interessa é o labirinto em que a trinca protagonista – depois quadra (O Conde de Monte Cristo no episódio passado não foi sequer, não é?) – se encontra, uma verdadeira armadilha criada por ex-senhores de escravo fazendo uso da aparentemente única utilidade que eles podem encontrar para um negro. Essa “simplicidade”, reitero as aspas, é uma realidade inafastável e é o cerne de Lovecraft Country ao que tudo indica. Tudo o que é construído ao redor, e por tudo entendam todo o lado sobrenatural, é o confeito para tornar o remédio amargo mais palatável, mais – se é que posso me atrever a usar essa palavra – aceitável. Pensem aqui: George publica mapas seguros para negros, Leti e sua irmã não conseguem empregos decentes por serem negras e Tic, mesmo tendo lutado por seu país, continua sendo cidadão de segunda, talvez terceira categoria por ser negro. E, enquanto isso, os “brancos vão para a Lua” como diz o poema. Esse é o labirinto. Essa é a situação insustentável que as firulas sobrenaturais extremamente divertidas (novamente palavra estranha para usar) nos fazem engolir mais facilmente.

Mas, nessa pancadaria toda, muita coisa em termos de desenvolvimento narrativo aconteceu, a maioria delas nas alucinações da trinca. George vê Dora (Erica Tazel), o amor de sua vida (e mãe de Tic?), Tic lida com a coreana que vimos naquele sonho/pesadelo do prólogo do primeiro episódio, que parece ser a mesma pessoa para quem liga mais tarde e Leti revela o que sente por Tic. Para a frente, a relação entre os irmãos Freeman revela-se contenciosa, com um passado complicado e sombrio. Tudo isso parece ser alimento para episódios futuros, já que, talvez fazendo a mímica do romance de Matt Ruff em que foi baseada, a temporada parece ser dividida em pequenos arcos, com o primeiro acabando aqui. É uma pena, claro, que o tio George tenha morrido (ao que tudo consta pelo menos, pois, pelo que vimos no episódio, qualquer coisa pode ainda acontecer). Já imaginava isso, para dizer a verdade, e a atuação de Courtney B. Vance desde já fará falta se ele por acaso não voltar magicamente, ainda que a entrada de Michael K. Williams, sempre excelente, potencialmente ajude a equilibrar a perda.

E eu aqui achando que Watchmen seria a única série completamente doida tendo como sustentáculo narrativo a segregação racial que a HBO soltaria… Ah, ledo engano! E que engano bom demais da conta. Já quero mais dessa porralouquice recheada de tapas na cara para que acordemos para a realidade das coisas.

Lovecraft Country – 1X02: Whitey’s on the Moon (EUA, 23 de agosto de 2020)
Showrunner: Misha Green (baseado em romance de Matt Ruff)
Direção: Daniel Sackheim
Roteiro: Misha Green
Elenco: Jurnee Smollett, Jonathan Majors, Courtney B. Vance, Michael K. Williams (Michael Kenneth Williams), Aunjanue Ellis, Abbey Lee, Jada Harris, Wunmi Mosaku, Jordan Patrick Smith, Jamie Chung, Tony Goldwyn, Joaquina Kalukango, Erica Tazel
Disponibilidade no Brasil: HBO
Duração: 59 min.

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