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Crítica | Lucíola, de José de Alencar

por Leonardo Campos
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De acordo com a cartilha romântica, as mulheres que viveram de prazer e luxúria não tinha espaço no céu, tampouco a chance de redenção sem que a sua vida fosse ceifada, como uma forma de exterminar os pecados da carne e elevá-la a uma condição imaculada no céu. Basta observar o panorama: no teatro, A Dama das Camélias. No cinema, Moulin Rouge – Amor em Vermelho. Na literatura, Lucíola.  Três obras, três suportes narrativos, três histórias em comum: todas descortinam a vida de uma cortesã que depois de descobrir o “verdadeiro” amor, decide abandonar a vida “errante”, seguindo a lógica hipócrita da sociedade de suas respectivas épocas.

No romance, somos apresentados a cartas destinadas a uma senhora (G.M). Nelas, Paulo Silva narra a história que lemos, ou seja, o seu relacionamento com Lúcia, uma mulher lasciva que mudou a sua vida para sempre. Após chegar ao Rio de Janeiro em 1855, o rapaz foi convidado por Sr. Sá para acompanhá-lo a uma festividade próxima a Igreja da Glória. Durante o seu passeio ao local, avista uma mulher atraente como um imã: era Lúcia, ou Lucíola, como alguns a chamava.

Conhecida por ser uma mulher de boas intenções, Lúcia era também devassa na prática da vida cotidiana. Os “diamantes eram os melhores amigos daquela mulher”. Avarenta, vai mudar de vida após apaixonar-se por Paulo, entretanto, enquanto o “amor não estava no ar”, vivia os seus últimos dias de “material girl”. Logo, Paulo descobre que a moça é uma famosa cortesã. Eles brigam, reatam, brigam novamente, tornam-se personagens de um palco construído para fazer desfilar todas as situações folhetinescas possíveis, para próximo ao final, ficarem temporariamente juntos, sendo separados pela morte súbita de Lúcia, vitimada pela tuberculose, mal que acometia muitas pessoas na época.

Antes de morrer, Lúcia conta para Paulo que se chamava Maria da Glória. Ele descobre que a sua amada foi uma das sobreviventes de um surto de febre amarela que dizimou boa parte da sua família. Sem perspectivas, começou a prostituir-se para salvar os familiares, mas após ser desmascarada pelo pai, é expulsa de casa, indo encontrar abrigo em um prostíbulo local. Muda de identidade, viaja para a Europa e quando volta, torna-se tutora da sua irmã, jovem que recebe a melhor educação e habitação disponível no período.

Continua a vida até o dia que conhece Paulo. Ele seria o responsável por tirá-la de sua prática “ordinária”, mas também seria o último homem da sua vida. A chance de redenção é concedida, todavia, o pagamento é a vida. Desta forma, José de Alencar nos fornece um romance impregnado de boa parte dos valores românticos presentes na literatura: a centralidade do homem na sociedade, os amores impossíveis, as situações folhetinescas, o instinto de nacionalidade que perfumava as ruas por onde os personagens trafegavam, bem como a punição para aqueles que estavam fora do eixo determinado pela sociedade da época.

Lucíola era uma prostituta que manchou a sua imagem, sujou o seu corpo e por isso, merecia ser castigada. Não há choro, nem vela. A morte apodrece o corpo, mas eleva a alma, segundo a lógica moralista do romantismo. Assim, além desta história de um amor impossível entre um homem e uma antiga cortesã, vemos passar diante de nossos olhos situações típicas da sociedade brasileira no século XIX, um período de modificações na conjuntura urbana, nos valores morais, nas relações de trabalho, poder e política.

Conforme aponta Silvana Furlan, em seu artigo Perfis femininos dos personagens de José de Alencar, nesta época, em média 1850, no Rio de Janeiro, 55% da população era de homens, sendo 42% o contingente feminino, o que tornou o mercado matrimonial bastante efervescente. O casamento era para o homem uma das principais condições para o crescimento no trabalho, pois estabelecer uma família era ganhar respeito das pessoas mais próximas, e assim, uma forma de integrar-se às condições de mobilidade social.

Por detrás desse contexto social, havia o apogeu do Romantismo, acontecimento que aqueceu os debates intelectuais no país. Em Formação da Literatura Brasileira, Antônio Cândido nos mostra que o período foi tomado por um fio de desejo dos brasileiros em dotar o Brasil de uma literatura equiparada aos padrões europeus. O Romantismo no Brasil, então, era uma questão política. O país tornara-se independente, era preciso encontrar uma produção literária que refletisse o caráter nacionalista que tomava conta de uma boa fatia dos intelectuais da época. Foi, então, uma época de esforço hercúleo para a construção da identidade nacional em várias esferas da sociedade, tendo na literatura um campo que encontrou bastante força para a disseminação do pensamento que se buscava perpetuar.

No que tange aos aspectos estruturais, Lucíola possui um narrador homodiegético. Ele escreve uma carta para uma senhora, sendo ela uma espécie de interlocutora muda, possível máscara para nós leitores. Ao fazer desse leitor um confidente, acaba por buscar agenciar um pacto de verossimilhança que funciona muito bem.

Entre os personagens que estão constantemente realizando ações que colaboram com o desenvolvimento do romance, temos o já citado Paulo, narrador, um homem de 25 anos, oriundo de Olinda. Chega ao Rio de Janeiro à trabalho, não é financeiramente abastado, apaixona-se por Lúcia e vive um tórrido amor, centro narrativo do romance em questão. Sá, um homem na casa dos 30 anos, é um dos amigos de Paulo, responsável por apresentar-lhe Lúcia.

Couto é um dos homens da alta sociedade da época, sendo o responsável por aproveitar-se de Lúcia quando ela tinha apenas 14 anos, colocando-a na vida da prostituição. Cunha, mesmo sendo casado, mantém algumas relações sexuais peremptórias com a cortesã. Laura e Nina trabalham com Lúcia. São apresentadas como colegas de trabalho de Lúcia, o que não as impede de invejar a beleza e a classe da personagem. Ana, irmã mais nova de Lúcia, é muito parecida fisicamente a personagem-título, também um dos personagens que menos aparecem no enredo.

Um dos pontos que tornam Lucíola um bom romance é a forma como José de Alencar prepara a entrada dos personagens. O ambiente é trabalhado de uma forma que prefigura a ação e o caráter daqueles que o habitam. Com foco narrativo em primeira pessoa, a história é conhecida tendo como base a perspectiva do individuo, neste caso, Paulo. Sendo assim, o livro endossa um discurso moralizante e patriarcal. Em suma, a mesma sociedade que gerou a prostituta, rejeita-a outrora.

Entre outros detalhes interessantes, há a ambientação do quarto de Lúcia próximo ao final do romance. Adornados por crucifixos, percebemos a adoção da concepção cristã da moça ao aproximar-se da morte. O distanciamento do urbano também não aparece de maneira gratuita ou como mero recurso de deslocamento narrativo. Tal fato implica na purificação da personagem, trazendo-a mais próxima do “sublime”. Mais perto da natureza, Lúcia tem a chance de apreciar a criação divina e distanciar-se dos valores materialistas da vida urbana em profusão.

Lúcia, como parte do mercado do prazer, é uma mercadoria cotada socialmente. Ao sair deste mercado, parece perder o seu “valor”. O romance também nos oferece também uma fatia da sociedade “certinha” e hipócrita da época. Em História de Amor no Brasil, Mary Del Piore informa que segundo um viajante germânico do século XIX, no Brasil, “a nenhuma moça é permitido caminhar na rua sem ir acompanhada de um parente muito próximo”. Pegando carona para as ideias do romance, se Lúcia andava sozinha, restava-lhe poucas opções: se não fosse prostituta, era mulher fora dos padrões determinados, sendo assim, uma “marginalizada”.

José de Alencar envolveu-se com muitas polêmicas na época. Uma das principais foi a crítica que recebeu ao publicar Lucíola, uma história mal recebida não apenas por tratar de temas tidos como “imorais”, mas por ser comparado ao texto teatral de Alexandre Dumas Filho, a peça A Dama das Camélias. Há até um livro que estudar profundamente esta questão: O Império da Cortesã, da pesquisadora Valéria De Marco. Várias críticas e autores debruçaram-se durante décadas para apontar se o romance era ou não, plágio do texto francês.

Prefiro, aqui, colocar o meu ponto de vista: Lucíola é, sim, uma adaptação da obra do dramaturgo francês para a literatura brasileira. Não importa que o texto tenha sido importado e melhor escrito, o que importa é que a estrutura é toda construída em cima do texto francês, o que não o torna menor ou descartável, ao contrário, é uma história rica, bem narrada, adaptada para outro contexto político-social. Explicitamente mencionado no capítulo XV, o romance contribui para a caracterização da personagem que tem como referência o romance que lê.

Se observarmos, há outros paralelos. Há um pouco da estrutura de Paulo e Virginia, romance francês de Bernadin Saint-Pierre, publicado em 1788, considerado um dos percussores do movimento romântico literário na Europa. Ao apresentar ideais iluministas, além de características como exotismo, exuberância e gosto pela solidão, a história é um clássico relato de amor com base no que se convencionou chamar de “romance romântico”, assim como Lucíola, Senhora, Diva, Cinco Minutos, A Pata da Gazela e outros romances são: enredos rodeados de conflitos amorosos que servem como centro nervoso para radiografias de suas respectivas épocas.

Com apelo cinematográfico, o romance entre Paulo e Lúcia foi adaptado em três ocasiões: há uma versão homônima de 1916, dirigida por Franco Magliani, com Aurora Fúlgida no papel de Lucíola. Anjo do Lodo, de Luiz de Barros, trouxe a vedete Vírginia Lane como a cortesã, sendo uma das versões que encontrou maior polêmica na recepção: Jânio Quadros liderou uma campanha contra o filme, acusando-o de ser uma obra que mexia com a moral, algo que segundo o político estava em decomposição no Brasil. Graças à intelectuais como José Lins do Rego, Prudente de Moraes e Vargas Neto, a intervenção do filme não funcionou.

Em 1975, o romance ganhou outra versão, desta vez, com altas doses de erotismo. Lucíola – O Anjo Pecador, dirigido e escrito por Alfredo Sternheim, trouxe Rosana Ghessa como a personagem-título, tendo Carlos Mossy no papel de Paulo. A obra é um fiasco cinematográfico, tamanha a busca por uma narrativa “fiel” ao romance, deixando de penetrar por questões contextuais bastante interessantes da década de 1970.

No final, fica a seguinte pergunta: pode uma prostituta falar? Subalterna, marginalizada, ser criado por uma sociedade que lhe destina um final tão trágico, poucas vezes encontrou um caminho iluminado para narrar a sua existência. O tema ainda é tabu, sendo constantemente resgatado pela contemporaneidade. Mesmo sem o destino privilegiado da “iluminada” e mais recente Tieta, Lucíola continua interessante. Não apenas por resgatar parte da memória do Brasil do século XIX, mas por ser um personagem bem delineado pelas penas de seu autor, o múltiplo José de Alencar.

Lucíola (Brasil, 1875)
Autor: José de Alencar.
Editora: Ática – Série Princípios.
Páginas: 180.

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