Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | Luiz Gama Contra o Império, de Bruno Rodrigues de Lima

Crítica | Luiz Gama Contra o Império, de Bruno Rodrigues de Lima

A luta pelo direito no Brasil da escravidão.

por Luiz Santiago
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Se tem uma personalidade brasileira cuja vida pessoal e luta político-social são tão incríveis, com tantos frutos em etapas diferentes e tão cheias de situações grandiosas para serem retratadas em todo tipo de mídia — mas que foi escondida e minimizada por muito tempo –, esta personalidade é Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830 – 1882). Por este motivo, foi com grande felicidade que eu devorei este livro do advogado e historiador Bruno Rodrigues de Lima, que se propõe a explorar a jornada do abolicionista a partir de uma perspectiva do direito, embora precise lançar mão de blocos biográficos (e coisas similares) sobre este baiano que conseguiu o impossível, se pensarmos no Brasil em que ele viveu e na condição a que foi submetido, ao ser vendido como escravo pelo próprio pai.  

A linha temática, aqui, é a de um Brasil onde o conjunto de normas, tantas vezes usado para oprimir, virou uma arma potente nas mãos de um homem que desafiava o sistema que o escravizou. É assim que podemos entender a construção argumentativa em Luiz Gama Contra o Império: A Luta Pelo Direito no Brasil da Escravidão, lançado pela Editora Contracorrente em 2024. Fruto de uma pesquisa de 20 anos do autor, que culminou em uma tese de doutorado premiada na Universidade de Frankfurt, o livro é um mergulho nas entranhas da mão de obra escravizada brasileira do século XIX, revelando como Luiz Gama, um autodidata nascido livre em 1830, na Bahia, transformou o conhecimento jurídico em instrumento de libertação pessoal e de seus iguais. Com uma narrativa muito gostosa de ler e que expõe de forma clara o seu propósito de análise, bem como o foco e as camadas interpretativas da obra, o autor costura história, cultura, direito e análise técnica de documentos, convidando-nos a revisitar um passado onde a luta contra a escravidão ganhava um novo rumo, agora com o protagonismo de um homem negro na linha de frente.

Filho de Luísa Mahin, uma africana livre que esteve envolvida com a Revolta dos Malês e a Sabinada (por isso precisou fugir), Gama foi arrancado da infância livre aos 10 anos, levado de Salvador para o Cais do Valongo (RJ), e depois para diferentes cidades de São Paulo, onde enfrentou o cativeiro até conseguir escapar e, com uma determinação que beira o inacreditável, reconquistar sua liberdade. Aos 17 anos, já alfabetizado, começou a traçar um caminho que o levou, anos mais tarde, a publicar Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (1861), tornando-se o primeiro autor negro a assinar um livro de poesias no Brasil. Foi na lida com a palavra escrita e falada, iniciando como amanuense, escrevente e escrivão na Secretaria de Polícia de São Paulo, que Gama absorveu os segredos do sistema jurídico e suas muitas particularidades, um terreno onde juízes e leis pareciam conspirar para perpetuar a desigualdade e onde a lógica do Império do Brasil funcionava para manter essa conjuntura funcionando bem, apesar de disfarces pouco funcionais como a Lei Feijó (1831), que proibia o tráfico internacional de africanos para o país. Essa experiência, explorada com riqueza de detalhes e ramificações históricas por Rodrigues de Lima, fundamenta as sementes de uma revolução que Gama conduziria com tinta, papel, voz e uma coragem descomunal.

O que torna este livro fascinante é como ele destrincha a habilidade jurídica do advogado Gama (muito constantemente — por evidente racismo acadêmico — referido apenas como “rábula“, termo usado para referir-se a pessoas que exerciam a profissão de advogado sem ter o título formal de bacharel em Direito), um homem que não apenas dominava as leis, mas fazia delas um uso político e racializado, escancarando os crimes cometidos pelos “cidadãos de bem” de São Paulo, muitos deles, inclusive, pessoas do clero que não se constrangiam em escravizar outros seres humanos. Um dos momentos de destaque é a reconstrução da “Questão Neto”, caso em que Gama, analisando o testamento do Comendador Ferreira Neto com argumentos que misturam filologia e estratégia processual, libertou 217 pessoas escravizadas em uma única tacada: “a maior ação coletiva de liberdade nas Américas”. Rodrigues de Lima nos guia por esse processo com uma clareza que faz o leitor sentir o peso histórico e sociológico de cada documento analisado e cada vitória arrancada em um tribunal hostil, mostrando como Gama transitava entre ações de liberdade e manutenção de direitos, desmontando as armadilhas do sistema escravista e delineando cada vez mais o seu nome, tanto para a comunidade negra, quanto para o judiciário e os escravocratas que o viam como persona non grata.

O autor também localiza a atuação de Luiz Gama para além dos tribunais, falando das mais diferentes frentes de atuação literária do abolicionista, com destaque para sua já citada poesia e seus textos, em distintos gêneros, publicados em jornais como Diabo Coxo, Cabrião, Democracia, Radical Paulistano e Polichinelo (só para citar os que ele criou) onde denunciava injustiças e conluios do Judiciário com uma ironia cortante. Também somos apresentados a outras atuações de Gama, sempre focadas em levar instrução formal e apoio jurídico às vítimas de abusos institucionais. Com isso, o autor conecta as diferentes frentes de trabalho e revela um Gama multifacetado, com uma vida intensa, marcada por lutas ininterruptas e com uma voz que se fazia ouvir, mesmo a contragosto dos ouvintes. Há até um destaque direto ao olhar particular e (novamente) racializado do jurista baiano, que via o direito não como um ideal neutro, mas como uma ferramenta manipulada por “trastes graduados”, que, em última instância, queriam manter privilégios de longa data e impedir qualquer movimentação contrária a seus egos, lucros e interesses — uma crítica assustadoramente atual diante das infâmias que ainda nos cercam.

A pesquisa de fontes deste livro destaca-se pela sua alta qualidade e raridade. Cada capítulo reúne, de forma bem estruturada, materiais jurídicos, publicações de imprensa e crônicas diretamente ligadas aos casos defendidos por Gama ao longo de sua carreira. O autor enriquece a narrativa ao trazer detalhes sobre os desfechos dos processos, apelações e interações paralelas do advogado, tornando o relato ainda mais profundo e cativante. O recorte também é rigoroso e não há fuga de tema: o autor não cai na armadilha de querer abraçar o país inteiro, puxando contextos amplos demais que desviam o foco do estudo. É exclusivamente pela linha da ação jurídica gamiana que toda a tese se ergue, e o autor cruza dados historiograficamente jogados para escanteio (postura, talvez, iniciada por Joaquim Nabuco), para mostrar o processo de apagamento e obscuridade nos quais foi abandonada a produção intelectual de Luiz Gama. A força do texto se intensifica ao situar Gama no Brasil de hoje, onde o racismo se reinventa e as promessas de igualdade tropeçam em velhas estruturas, apesar dos avanços conquistados. O epílogo Memória, Samba e Futuro traça um paralelo delicado entre a luta de Gama e a resistência cultural simbolizada por figuras como Paulo da Portela, sugerindo que a liberdade que ele buscava também pode ser vista em outras áreas, nas histórias contadas nas periferias e na resistência de um povo que não se curva.

Ler Luiz Gama Contra o Império é reabrir a janela para um Brasil que foi e ainda é racista, violento e afeito a castas intelectuais e econômicas. Bruno Rodrigues de Lima não apenas resgata um herói nacional negligenciado. Ele nos entrega um rico documento onde podemos analisar as dores e as possibilidades de um país em eterno embate de domínio e poder de classe e cor. Em sua exposição analítica, a obra transita entre o manifesto (não exatamente pela abordagem do autor, mas pelo tema e pela persona retratada) e a homenagem crítica, mostrando que a história de Gama não foi sepultada, como muitos queriam, mas floresce. Se o direito, nas mãos do abolicionista, virou gazua para abrir cadeados de injustiça, este livro é o equivalente a um mapa que nos ajuda a identificar os agentes históricos e o espaço onde essa guerra aconteceu e perdura. Um caminho de conhecimento para podermos dar os nomes corretos aos escravocratas adaptados ao nosso tempo, tanto nos três poderes, quanto na camada social que os financia. O livro se encerra com um sopro de otimismo que é um alento, falando da liberdade e da luta por direitos civis como uma base sólida sobre a qual podemos continuar a construir uma sociedade mais justa. Esse tom de esperança não apaga as dificuldades, mas reforça a resiliência que a história de Gama inspira. Um olhar ligado ao Brasil atual e que faz um chamado para o enfrentamento das injustiças, munidos das lições de um herói que nunca deixou de lutar.

Luiz Gama Contra o Império (Brasil, 2024)
Autor: Bruno Rodrigues de Lima
Editora: Contracorrente
628 páginas

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