Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Lukas

Crítica | Lukas

Seria esse o melhor filme da carreira do astro belga?

por Ritter Fan
822 views

Lukas, o penúltimo filme dos anos 2010 de Jean-Claude Van Damme, terminou de confirmar algo que eu já vinha sentindo e comentando ao me encarregar de conferir toda sua filmografia em ordem cronológica: muito diferente da impressão popular na linha de que os filmes pós-2000 do astro belga são em grande parte ruins, posso afirmar sem medo de errar que esse é o período mais rico da carreira dele, mesmo que a maioria das obras tenha sido lançada diretamente em vídeo (aliás, diria que essa talvez seja a razão principal para essa impressão equivocada). Não que as décadas de seu aparente declínio de popularidade tenha gerado obras-primas, mas a quantidade de filmes bem acima da média entre 2000 e 2020 não é algo a ser desprezado, mesmo considerando que há alguns exemplares abissais, logicamente, pois a inconsistência é uma marca inegável da filmografia do Muscles from Brussels.

Se JCVD, de 2008, talvez seja o mais adulto e complexo filme da carreira de Van Damme, ele possivelmente deve essas características à pegada ao mesmo tempo metalinguística e autobiográfica do roteiro, pelo que ele poderia estar facilmente em uma categoria à parte. Lukas tem o mesmo tipo de abordagem mais realista e sombria de JCVD, mas sem se valer da vida do próprio astro para criar todo o drama, sendo mais facilmente “comparável” às obras anteriores dele, portanto. Outro aspecto interessante é que o filme franco-belga dirigido por Julien Leclercq, que ganhou o título The Bouncer em países anglo-saxões, quase não se vale daquilo que fez a carreira de seu ator principal despontar, ou seja, suas notáveis habilidades marciais. Há apenas um momento de pancadaria em todo o longa e mesmo ela está mais para luta de rua, no estilo vale-tudo, do que para algo ensaiado e repleto de golpes sensacionais, mas impossíveis, algo que é ao mesmo tempo mais pé no chão e respeitador da idade do ator e de seu personagem.

A história não é a coisa mais original do mundo, mas em sua simplicidade e com o bom uso de tropos da indústria, ela acaba ganhando um verniz elegante e altamente satisfatório em termos de desenvolvimento. Nela, o personagem-título vivido por Van Damme é um segurança de boate de passado obscuro aos poucos revelado que, depois de lidar com um cliente influente que acaba se acidentando, é demitido, tendo que procurar um novo emprego no clube de strip-tease de Jan Dekkers (Sam Louwyck), membro do crime organizado, para sustentar Sarah (Alice Verset), sua filha de oito anos. É nesse novo emprego que ele é contatado pelo misterioso policial Maxim (Sami Bouajila), que usa o ocorrido na boate para chantageá-lo de forma que ele concorde em servir de informante sobre Dekkers e seus negócios escusos que envolvem a falsificação de dinheiro. Sem alternativa, Lukas começa a galgar os degraus dentro da organização criminosa de forma a tanto manter sua filha segura quanto a satisfazer o cada vez mais exigente Maxim.

O filme, apesar de tecnicamente poder ser classificado como “de ação”, tem a nobreza de não viver somente para a ação e cuida muito mais de trabalhar seu protagonista e sua situação cada vez mais claustrofóbica e sem alternativas do que realmente entregar grandes momentos com o intuito de justificar-se como um “filme do Van Damme” no sentido mais comum e, francamente, esperado da expressão. Claro, o espectador que quiser refestelar-se com momentos puros de ação terá não só a luta que mencionei e que acontece ainda no terço inicial, como também alguns outros bons momentos, valendo especial destaque para a sequência em que Lukas invade uma casa no meio da mata para sequestrar um jovem refinador de cocaína que será usado por seu chefe como moeda de troca. O que realmente importa é que mesmo as sequências puras de ação são muito bem trabalhadas no contexto do filme, com essa da invasão, por exemplo, sendo, essencialmente, um tracking shot a partir das costas de Lukas que o segue por toda a sequência, aumentando a tensão a cada cômodo por que ele passa e a cada novo inimigo que aparece, mas sem que o momento seja revestido daquela artificilidade de videogame de muitos outros longas que tentam o mesmo feito. Até mesmo a sequência de “luta de rua” – em um ambiente que lembra demais e, desconfio, propositalmente, Clube da Luta – tem um jogo de câmera que revela muito claramente que Leclercq muito claramente tinha todo um plano visual para sua obra.

Nesse aspecto, aliás, é notável como a fotografia dessaturada de Robrecht Heyvaert, com o uso de uma paleta de cores que transita com facilidade do quente para tomadas interiores para o verde doente em tomadas exteriores, facilita a imersão no cotidiano desesperançoso de Lukas que tem em Sarah seu único raio de luz. Sim, é clichê, mas como não canso de dizer, clichês só são ruins quando são despropositados e, aqui, as escolhas visuais são cuidadosas e cheias de significado. Diria até mesmo que é um grande acerto a trilha sonora discreta, mas poderosa quando precisa ser, composta por  Jean-Jacques Hertz e François Roy, e usada com parcimônia e inteligência pelo diretor.

Além de mostrar cuidado e categoria com sua obra, Leclercq ainda faz o que infelizmente poucos outros diretores tentaram ao trabalhar com Van Damme, que é dar espaço para o lutador ser ator. Não que, com esse espaço, o belga revele-se como o suprassumo dramatúrgico, pois ele está longe de ser uma maravilha, mas Van Damme pode muito claramente dizer que sim, ele sabe atuar, algo diferente da maioria dos chamados (por mim) brucutus oitentistas. E não quero de forma alguma dizer que ele, em começo de carreira, era ator, pois não era. Mas, a partir de certo ponto de sua filmografia, ele começou a realmente interpretar, talvez como uma forma de substituir sua perda natural de elasticidade para malabarismos. Quando um diretor como Leclerq, então, para sua câmera para realmente olhar para Van Damme e dar-lhe o espaço necessário, o resultado é algo como o que vemos em Lukas, em que o lutador realmente transforma-se em ator, entregando uma performance torturada, sentida, sofrida e, acima disso tudo, perfeitamente crível.

Lukas, por essas e outras razões, é uma joia infelizmente esquecida na intensa carreira cinematográfica de Jean-Claude Van Damme que merece ser destacada em meio às suas dezenas e dezenas de longas. Não é o típico filme do belga por ser de queima-lenta, não depender de lutas e de sequências que existem somente para agradar seu público cativo, e por mostrar um cuidado audiovisual raro em sua filmografia, cuidado esse que inclui dar valor a seu astro. O filme de Julien Leclerq é, sem a menor sombra de dúvida, um dos pontos mais altos de uma carreira que, desafortunadamente, só é lembrada pelo público em geral por espacates, dancinhas e caretas em câmera lenta.

Lukas (Lukas – França/Bélgica, 2018)
Direção: Julien Leclercq
Roteiro: Jérémie Guez, Julien Leclercq
Elenco: Jean-Claude Van Damme, Sveva Alviti, Sami Bouajila, Alice Verset, Sam Louwyck, Kevin Janssens, Kaaris
Duração: 94 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais