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Crítica | Luke Cage – 1ª Temporada

por Guilherme Coral
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estrelas 4,5

Obs: Leia nosso Entenda Melhor com todas as referências e easter-eggs da série bem aqui.

Depois de dois heróis da Marvel aparecerem nas telinhas por intermédio da Netflix, com três temporadas bem-sucedidas – duas de Demolidor e uma de Jessica Jones – chegou a hora de Luke Cage ganhar seu espaço, criando em nossas mentes o inevitável questionamento: será tão bom quanto o que vimos antes? A resposta, após terminar de assistir os treze episódios do seriado, porém, não vem tão imediatamente assim, pois, apesar de estarmos lidando com o mesmo universo, temos aqui uma obra essencialmente diferente do que veio antes, algo com identidade própria, contando com seu próprio ritmo e foco narrativo. Acima de tudo, contudo, Luke Cage é uma grande homenagem à cultura negra norte-americana, formada por um elenco, em sua grande maioria, de atores e atrizes negros ao som do blues, rap, hip-hop, jazz e soul.

A trama gira em torno de Luke Cage (Mike Colter), um homem que saíra da cadeia há não muito tempo e que decide se restabelecer no Harlem, vivendo humildemente e trabalhando em dois empregos para conseguir pagar seu aluguel. Quem já assistiu Jessica Jones, porém, sabe que Luke não é o que aparenta e conta com uma força sobre-humana, além de ser praticamente invulnerável. Quando os conflitos de gangues locais atingem um ponto de extrema violência, Cage decide tomar providencias e devolver as ruas do bairro para seus verdadeiros donos: os moradores do Harlem.

Cheo Hodari Coker, showrunner da série, esperta e respeitosamente decide fugir do óbvio e não nos traz apenas uma obra sobre super-heróis e vilões. Toda sua narrativa é repleta de críticas sociais presentes em um retrato bastante realista desse recorte da sociedade. Do menino que é enquadrado pela polícia somente por ser negro até o homem que é moldado pelo ambiente hostil que crescera, todos os tristes aspectos de nossa realidade são mostrados nos treze episódios da série. Mais do que nunca sentimos como se o bairro na qual a história se passa fosse também um personagem, dada a união dos cidadãos que ali habitam. Há um grau de humanidade surpreendente presente em toda a obra, o que apenas garante nossa imersão, conforme a visão sobre Cage se altera com cada passada da trama. A velha história de herói ou ameaça, naturalmente, reaparece, mas aqui não a presenciamos por meio de jornais e sim pela boca dos moradores do Harlem, ou pela simples maneira como olham para o protagonista.

Coker ainda vai além disso e inúmeras vezes menciona nomes importantes da história, como Malcolm X, Kenyatta e Martin Luther King, brinca com referências contextualizadas, como Shaft e Django Livre, sempre de forma a unir a trama de Luke Cage com o que veio antes dele, independente da origem, contanto que dentro da temática abordada. A música, ambas a diegética e a não-diegética, é escolhida a dedo, sendo um dos principais elementos que compõem essa envolvente atmosfera, seja através da voz dos artistas ou das faixas instrumentais que transmitem um tom distintamente urbano ao seriado. Inúmeras vezes sentimos como se os próprios personagens escutassem tais sons e se movimentassem no ritmo deles, apelando diretamente para nossos sentimentos, deixando-nos cada vez mais empolgados.

Já cativados no primeiro capítulo, que consegue nos introduzir a esse universo em um ritmo calmo, paciente, lentamente caminhamos em direção ao caos. Assistimos o bairro ser engolfado pela guerra entre as gangues e policiais e o interessante é como tudo soa bastante vivo, de forma similar ao que vimos em Demolidor. As ações de Luke Cage, de fato, são um catalisador para tudo sair dos eixos, ainda que ele tenha sido tragado para todo esse conflito contra sua vontade. Diferente da frieza do crime organizado que estamos acostumados a ver na televisão, porém, o que assistimos aqui é algo movido principalmente pela emoção – raiva, frustração, ressentimento são apenas um dos elementos que compõem esse quadro e a figura de Cornell Stokes, o Boca de Algodão/Cottonmouth (Mahershala Ali, o Remy Danton de House of Cards), perfeitamente encapsula isso, com uma história pregressa que representa, infelizmente, a realidade de muitos jovens que se transformam em criminosos. É bastante tocante como Ali traz um crescente olhar de tristeza ao personagem, garantindo uma profundidade ao personagem e criando uma desconcertante oposição ao seu temperamento explosivo.

A outra face da moeda do lado dos antagonistas é Cascavel (Erik LaRay Harvey), que a Netflix traduziu como Kid Cascavel, um nome já em desuso, que fora utilizado nas primeiras edições brasileiras dos quadrinhos de Luke Cage. Ele é uma mistura da maldade de Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio) com a obsessão de Kilgrave (David Tennant), que o torna extremamente imprevisível, constituindo um ótimo vilão para a série – alguém preenchido pela ira, constantemente preso ao passado. Por mais que sua primeira aparição gere certa confusão no espectador, algo que somente se apaga com o passar dos capítulos, não podemos deixar de odiar amar o antagonista. Nele vemos o Luke que deu errado, seu completo oposto e o roteiro muito bem utiliza figuras bíblicas para ilustrar essa relação, justificando a analogia com a fixação do personagem com o texto sagrado, o que, por sua vez, também é bem encaixado dentro da trama.

E Luke Cage não para por aí, nos oferecendo ainda mais duas interessantes figuras em oposição ao que o herói protagonista representa. A primeira, Mariah Stokes (Alfre Woodard), representa perfeitamente a figura do político corrupto, que utiliza sua própria história e a população do bairro onde crescera para benefício próprio. Curiosamente, há nela uma maldade ainda maior que em Cornell, como se toda a sua pureza houvesse se apagado, enterrada pelo cenário no qual fora criada. Shades (Theo Rossi), por sua vez, nos remete automaticamente a Doug Stamper (Michael Kelly), de House of Cards, através de sua atitude fria e analítica, que prefere sempre ficar às sombras do que acontece ao seu redor, movimentando as peças de forma discreta e mortal.

Se um herói é definido pelos vilões que enfrenta, então Cage certamente está mais que garantido como um forte personagem, mas isso não seria possível não fosse a interpretação de Mike Colter, que nos traz um herói tão humano quanto Matt Murdock e Jessica Jones. Apesar de suas habilidades sobre-humanas sentimos como se, na verdade, ele fosse um de nós – é alguém repleto de dúvidas, receios e arrependimentos, que conta, sim, com uma enorme nobreza de espírito, mas que precisa dos empurrões certos, como qualquer um de nós necessita antes de realizar algo que requer coragem. Mais ainda, ele não tem um sonho grandioso ou algo assim. Seu objetivo é simplesmente transformar o Harlem em um lugar melhor, o que, por si só, já o torna mais “pé no chão”; ele não é um super-herói, é apenas um homem que, por acaso, ou destino, acabou ganhando superforça que ele reluta em usar.

Suas vestimentas perfeitamente retratam a figura do homem inocente falsamente incriminado, que precisa sempre esconder seu rosto por baixo de um capuz, nos trazendo uma manifestação certeira do preconceito em nossa sociedade. Além disso, de forma criativa, ele ganha seu próprio uniforme de herói, um casaco repleto de furos de bala que é utilizado em inúmeros pontos para criar situações bem-humoradas e outros desdobramentos conforme progredimos pela temporada.

Não poderia deixar de exaltar o trabalho de todos os atores e atrizes do lado dos “bonzinhos” e, naturalmente, a construção do roteiro em cima de cada um deles. A pluralidade de Luke Cage é garantida através deles, formando um perfeito retrato social, com inúmeros papeis dentro da sociedade ilustrados aqui, desde o policial até o carismático e amado dono da barbearia. E o mais gratificante é enxergar o tempo em tela que o texto garante a cada um deles, sabendo dosar as aparições do protagonista, dos antagonistas e dos coadjuvantes de forma a construir cada um com cautela, criando um cenário praticamente ausente de personagens rasos.

Evidente que essa escolha, por vezes, cria certos percalços na narrativa, uma ligeira lentidão na segunda metade da temporada chega a ser bastante perceptível, mas, felizmente, nesse ponto estamos tão mergulhados na história, que conseguimos relevá-los sem grandes problemas. Não é perfeito, naturalmente, mas conseguimos continuar a assistir sem qualquer esforço.

O curioso é que, no meio de toda essa homogênea mistura, Cheo Hodari Coker opta por trazer pontuais cenas de ação, evidenciando que seu foco não é o poder de Cage e sim a motivação de sua luta. Nas cenas em que o vemos em combate enxergamos com clareza como a montagem sabe trabalhar com o personagem, utilizando um número maior de cortes, com planos mais curtos a fim de trazer um maior realismo às suas ações sobre-humanas. A direção também não deixa a desejar e dificilmente emprega um enquadramento que revele alguma artificialidade, ao mesmo tempo que conseguimos entender exatamente tudo o que se passa na tela, sem qualquer dificuldade.

Não temos aqui coreografias elaboradas como em Demolidor, visto que isso não faria qualquer sentido narrativo. Luke não precisa se esquivar ou se esconder (exceto quando está acompanhado de algum outro personagem) em virtude de seus poderes. Há um teor muito maior de filme de ação oitentista, visto que basta ele andar em linha reta e acabar com seus inimigos de forma direta. Isso é ainda aproveitado pelo roteiro, que traz algumas frases de efeito de forma consciente, ao ponto de serem chamadas de brega por outra personagem em mais uma dose de realismo garantida à obra.

Quando a temporada chega ao fim, ficamos com a nítida percepção de termos acabado de assistir uma série bastante diferenciada do que as anteriores da parceria Netflix/Marvel. Luke Cage certamente não é perfeita, mas conta com uma pluralidade e profundidade tão envolvente que nos faz relevar seus deslizes, constituindo-se como uma série que não somente nos diverte, como nos faz pensar e apreciar cada aspecto de sua construção narrativa, desde a atmosfera criada pela sua fantástica trilha sonora, até os personagens facilmente relacionáveis. Trata-se de uma obra consideravelmente humana, que ganha um espaço fixo merecido em nossas memórias, gerando a vontade imediata de assistirmos tudo novamente.

Luke Cage – 1ª Temporada — EUA, 2016
Showrunner:
 Cheo Hodari Coker
Direção: Vários
Roteiro: Vários
Elenco: Mike Colter, Mahershala Ali, Simone Missick, Rosario Dawson, Alfre Woodard, Frank Whaley, Theo Rossi, Frankie Faison, Darius Kaleb, Erik LaRay Harvey, Kellen C Wingate, Jaiden Kaine, Justin Swain, Deborah Ayorinde
Duração: 13 episódios de aprox. 50 min.

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