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Crítica | Luzia-Homem, de Domingos Olímpio

por Luiz Santiago
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A devastadora Grade Seca que durou de 1877 a 1879*  foi responsável por milhões de mortes no Nordeste do Brasil. Milhares de retirantes, de famílias miseráveis, de crianças, adultos e velhos morrendo de fome e sede tornaram-se a regra na paisagem da Caatinga, especialmente no Ceará, o Estado (Província, na época) mais castigado por esta situação que entrou para o imaginário popular devido ao seu resultado imensamente destrutivo e socialmente traumático.

Esse período de nossa História foi amplamente trabalhado nas artes, desde narrativas mais imediatas aos eventos, como a que temos no romance Os Retirantes (1879), de José do Patrocínio — correspondente do Gazeta de Notícias no Ceará, entre maio e setembro de 1878, um dos piores momentos da seca –, até produções lançadas décadas depois, como as telas de Cândido Portinari, como o lancinante Vidas Secas, de Graciliano Ramos e muitos outros Romances de 30, e também como esse romance do cearense Domingos Olímpio: Luzia-Homem, originalmente publicado em 1903.

Narrativa regionalista que se encaixa dentro do movimento Naturalista, Luzia-Homem começa com o estabelecimento de um espaço físico que nos captura de imediato. Um grande número de pessoas trabalham sob Sol a pino, construindo uma nova prisão. Como era comum dos romances naturalistas, o meio desses personagens e também as suas origens ganham grande destaque, servindo como uma espécie de justificativa moldadora para tudo o que veremos com o passar das páginas. A descrição de Domingos Olímpio para o local é imensamente forte e nos dá uma clara visão da miséria da região, da falta de água, do castigo que o Sol trazia a todos e do que essas pessoas faziam para conseguir trabalho e alguma pouca ração para comer.

Do meio desse mar de horrores surge uma verdadeira maravilha, Luzia, a quem chamam de Luzia-Homem. Uma das minhas leves broncas com o livro, do meio para o final, é justamente o progressivo abandono do foco nessa personagem, que é absolutamente fascinante. Um abandono ou diminuição de atenção para trazer à tona coisas não relevantes e nem verdadeiramente necessárias para o livro, considerando tudo o que tivéramos até ali. Pois bem, Luzia tem uma força descomunal, exibe um porte mais masculino, tem buço, pelos e mesmo assim mantém uma marca feminina que jamais deixa de chamar a atenção das pessoas.

A maneira como Olímpio escreve os diálogos é deliciosa. Eu não sei se existe uma certa aproximação cultural que me faz vez esses diálogos e esse espaço com outros olhos (eu sou de Pernambuco), mas o realismo de algumas falas e a fluidez com que algumas conversas são expostas merecem aplausos. De fofocas à troca de informações ou as comuns “conversas jogadas fora”, tudo o que sai da boca dos personagens tem um sabor humano, de gente de verdade, de dia de feira, criando no leitor uma aproximação cada vez mais forte com esses indivíduos. E como a intenção geral aqui é explorar a tragédia em diversas formas, tal aproximação é um convite para que o leitor também sofra e se agonize pela prisão injusta de Alexandre ou espere a punição mais horrenda possível para um dos personagens mais nojentos da nossa literatura: Crapiúna, o mulato sem moral, valores ou pudor que é doentiamente apaixonado por Luzia.

Até certo ponto da narrativa, o leitor vê o autor manter uma linha bastante clara de abordagem, com Luzia e os personagens mais íntimos à sua volta (Teresinha é uma dessas) no centro das atenções. Não há distrações desnecessárias, as histórias de Raulino contadas nesse início são apenas curtas anedotas (como deveria ser) e a mais longa memória do passado, quando Teresinha lembra de Cazuza e de outros amantes de sua vida, serve de aproximação temática com o dilema da própria Luzia. No final do livro, porém, a coisa muda. A cansativa narrativa de origem da família de Teresinha quebra por completo o ritmo do volume (não entendi a necessidade dessa família aparecer já no final); a história de Raulino sobre a Mãe D’água se estende até não poder mais, e há um buraco na preparação para a partida do grupo em direção à Zona da Mata nordestina, longe da seca que deixa o final estranhamento corrido.

Mas a pior das resoluções no desfecho do livro é certamente a fuga de Crapiúna da cadeia e a desgraça que ele leva para Luzia, atingindo também a Alexandre, Dona Zefinha e companhia. Não temos indícios de uma fuga, apenas de um comportamento atípico do personagem na prisão. Essa não-preparação me fez ver a aparição dele no final apenas como uma conveniência milagrosa para terminar o livro com uma tragédia, já que em obras assim, é claro que a felicidade não poderia ser completa. E só pra deixar claro, a questão não é Luzia morrer, mas o encaminhamento até que sua morte acontecesse: uma porção de rápidas passagens e resoluções que não conseguimos acompanhar o seu desenvolvimento, apenas a sua maturidade, destoando da abordagem feita pelo pelo autor no restante do livro, em tudo o que diz respeito a Luzia.

A força dos sentimentos somada à uma desgraça social e geográfica são as camadas que Domingos Olímpio delineia aqui em Luzia-Homem, um romance sobre a potência de uma mulher orgulhosa, moldada nas dificuldades da vida, mas de um coração mole e muito bom. O desenvolvimento da amizade entre Luzia e Teresinha está entre uma das coisas mais bonitas do livro, assim como o desenvolvimento do personagem Alexandre, que tem um comportamento bem diferente de todos os homens descritos na obra, e é justamente ele quem tem a coragem de se aproximar respeitosamente de Luzia e conquistar seu coração. E esse é o tipo de relação que o leitor fica torcendo o livro inteiro para acontecer, tamanha é a simpatia dos personagens e a beleza que vemos em uma possível vida dos dois juntos. Subtraída a correria e alguns súbitos brotos narrativos ao fim da obra, Luzia-Homem é um ótimo livro que lemos rápido e rangendo os dentes de ódio e também de agonia e compaixão. A vida de personagens que representam um sofrimento que sabemos ter sido real e que, guardadas as devidas proporções mas mantida a tristeza, ainda sofrem, espalhados por todo o nosso país.

* Algumas fontes indicam o início do evento um ano antes (1876) daquele apontado aqui no Brasil e o estendem o até um ano depois (1880), nesse caso, levando em conta as suas duradouras consequências. A esse respeito, é importante ressaltar que esta seca não atingiu apenas o Brasil. Por diversos fatores climáticos (um colossal El Niño + incomum aquecimento de temperatura, além do Pacífico, nas águas do Índico e do Atlântico norte), a Grande Seca, também chamada de Grande Fome, atingiu o nosso país de forma verdadeiramente intensa entre os já conhecidos anos de 1877 e 1879, mas também castigou de forma intensa a China, a Índia, as Filipinas, a África do Sul e todo o Noroeste da África, isso só para citar as regiões mais marcantes.

Luzia-Homem (Brasil, 1903)
Autor: Domingos Olímpio
Edição lida para esta crítica: Martin Claret — 3ª edição (25 de fevereiro de 2016)
268 páginas

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