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Crítica | M. Butterfly (1993)

por Leonardo Campos
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Quando David Cronenberg adentrou na produção de M. Butterfly, o cineasta canadense deu início à sua nova parceria com Jeremy Irons, ator que lhe concedeu um desempenho dramático formidável em Gêmeos – Mórbida Semelhança, na década anterior, era da abordagem do corpo e de suas transformações diante do avanço da ciência e da tecnologia, da mídia, bem como das vertiginosas obsessões de seus personagens, sempre num frenesi psicológico intenso e marcante. Mistérios e Paixões, de 1991, demonstrou a sua capacidade de administrar uma atmosfera surrealista, ao abordar o universo do escritor William Burroughs por meio do pastiche do romance O Almoço Nu, junto aos acontecimentos registrados em textos biográficos sobre este peculiar representante da Geração Beat. Representação, por sinal, é um dos pontos nevrálgicos de M. Butterfly, uma narrativa voltada ao poderoso jogo de espelhos proporcionado pela relação dos seres humanos com as suas respectivas identidades, um campo pantanoso que não possui nada de estático, sempre a nos surpreender com transformações e suas consequências. Neste denso e poético filme de Cronenberg, o protagonista vivencia o seu “eu literário”, numa trajetória que mescla realidade, ilusão e o centro nervoso da trama, a arte da representação.

Lançada em 1993, a produção que teve o roteiro assinado por David Henry Hwang, também dramaturgo da peça que serve como ponto de partida, reflete a identidade e sua preexistência no indivíduo, moldada em seu grupo social de origem. Na trama, o diplomata francês René Gallimard (Jeremy Irons) encontra-se num de seus costumeiros serviços, desta vez, para a Embaixada da França na China. Em sua imaginada trajetória de trabalho, as coisas saem um pouco da linha retilínea de sua vida tomada por programações e agendamento, pois na movimentada e artisticamente peculiar Pequim dos anos 1960, ele conhece a diva Song Liling (John Lone), forte figura feminina que o levará ao mais profundo e conturbado momento de sua vida, claramente trágico desde que compreendemos as regras do jogo de obsessão e desejo estabelecidos pela narrativa. Aparentemente inspirada na história do diplomata Bernard Boursicot e do cantor de ópera Shi Pei Pu, M. Butterfly é a representação dentro da representação: enquanto a cantora se apresenta nos palcos com a ópera homônima, o personagem se encanta e apaixonado, não consegue deixar de pensar na figura deslumbrante, rodeada por um exotismo arrebatador.

Depois que é apresentado à artista, René Gallimard é levado pelos seus impulsos e engrena um romance com a cantora. O que ele não sabe é que Song Liling é uma espiã do governo chinês que precisa conquistar a sua confiança para transforma-lo num agente duplo, situação burocrática do roteiro que estabelece a alegoria necessária para o debate sobre identidade se intensificar. O diplomata não adentra apenas num jogo de múltiplas personalidades profissionais e políticas, mas na própria divisão do seu ser, levada ao ápice no trágico desfecho, previamente sinalizado com muita cautela e sutileza pela história bem construída, igualmente meticulosa na direção sempre firme de David Cronenberg. Durante o contato, temos choques culturais, códigos sociais que os repelem, gerenciado pelo desejo que os une. É uma jornada de obsessão, paixão e alguma ingenuidade, pois nos colocamos o tempo inteiro no lugar do diplomata para refletir o trivial: será que ele nunca soube que a sua musa era um homem? Teria a cantora desejado o seu amante ou tudo não passou de um mero jogo de sedução para fins políticos? São muitos questionamentos e nenhuma resposta fácil por parte desta tragédia despreocupada em nos entregar uma história convencional ao longo de seus 101 minutos.

Ao passo que as situações dramáticas se desdobram, o diplomata francês se encontra diante da farsa, de uma suposta gravidez, bem como de um jogo que envolve chantagens, descobertas, ameaças e exposição de sua vida, numa época ainda cheia de tabus apenas para mencionar o termo “homossexualidade”, piorou o devido reconhecimento para questões de gênero e identidade. O que se segue, então, é a vergonha pública. Humilhado não apenas por ter a sua masculinidade questionada, René Gallimard adentra numa jornada psicológica tomada por incongruências, carregado por um movimento que ele adota, ao ignorar que esteve numa situação de representação e assim, mergulha numa redoma de obsessão e mistério, ao trazer para o seu contexto cultural, traços da sua experiência oriental. A sua “vida real” se torna representação, resposta psicológica para as decepções diante da divinização de sua deusa, uma ilusão que ele se nega a aceitar, culminando na famosa cena do caco de espelho que possui, tal como o personagem até determinado ponto da narrativa, uma função dupla. Ele usa o utensilio para se maquiar e, concomitantemente, cortar o próprio pescoço.

Nesta lógica narrativa que dialoga com alguns pontos da filosofia de Durkheim, em especial, as suas considerações sobre como a vida social pós-moderna se entrelaça com determinadas concepções do mundo das artes, Cronenberg contou com as paletas de cores, movimentações de câmera, enquadramentos poéticos e iluminação da costumeira parceria estabelecida com Peter Suschitzky na direção de fotografia, setor que nos entrega um trabalho meticuloso na condução das imagens, ao delinear, por meio de aproximações e afastamentos, sentimentos dos personagens que atravessam uma história cheia de provações. Para a concepção dos quadros carregados de vivacidade, o fotógrafo contou com as demais parcerias de longa data do cineasta: Denise Cronenberg cumpre adequadamente a sua função no filme mais dependente dos figurinos no universo do canadense, afinal, em M. Butterfly, a roupa e o corpo são meios de comunicação muito expressivos para os personagens. Os trajes ganham maior impacto com o também meticuloso design de produção de Carol Spier, pulsante, carregado de cores e contrastes, com cenários, direção artísticas e adereços que se tornam ainda mais deslumbrantes quando acompanhados pela condução musical de Howard Shore, numa textura percussiva mais melódica que o habitual.

Dentre os tantos debates propostos em M. Butterfly, podemos perceber uma reflexão sobre a importância de compreendermos a ficção como um recurso necessário para a vida cotidiana. É uma estratégia que arranjamos e arrojamos para reiteração de nossa existência, afinal, para comprovar que existe, os seres humanos tendem a contar as suas histórias. E no decorrer da narração de nossa existência, evoluímos com os nossos respectivos contextos. Mudamos muitas vezes, noutras regredimos ou mantemos o padrão estático. Mas existimos, fato, nem que a trajetória seja menor ou maior conectada com o que almejamos neste processo. Como não poderia deixar de ser num terreno crítico diante de “um” Cronenberg, o filme foi acompanhado por polêmicas, debates com opiniões divididas e muitas leituras além do universo cinematográfico, isto é, com alcance nas malhas das reflexões acadêmicas, em alguns bons casos, fértil, noutros, inúteis diante do hermetismo e das voltas em torno de teorias, sem a preocupação com o próprio objeto analisado, M. Butterfly, narrativa que dialoga com a fase mais voltada ao processo de compreensão dos elementos psicológicos que formatam os seus personagens, figuras ficcionais acuadas dentro de seus próprios desejos e ansiedades.

M. Butterfly — Canadá/China, 1993
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Henry Hwang
Elenco: Jeremy Irons, John Lone, Barbara Sukowa, Ian Richardson, Annabel Leventon, Shizuko Hoshi, Vernon Dobticheff
Duração: 101 min.

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