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Crítica | Macabro (2020)

por Leonardo Campos
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O horror como gênero privilegiado no cinema brasileiro é uma questão que tem se tornado cada vez mais evidente, tamanha a eficácia de nosso sistema de produção ainda muito problemático em sua distribuição, conceber filmes com atmosferas sombrias e assustadoras, sem ficar devendo ao costumeiro interesse colonial de alguns realizadores que precisam produzir narrativas próximas dos modelos estrangeiros para conseguir alcançar maior público dentro do próprio país. Foi com esse pensamento, mesmo antes de adentrar em Macabro, dirigido por Marcos Prado, que encarei a minha futura reflexão sobre o filme, o texto que você confere nesta leitura. De fato, estamos cada vez mais amadurecidos na forma como emulamos e transformamos em algo local, uma estrutura narrativa comumente conhecida e respeitada no sistema de produção estadunidense. Ainda podemos ir muito longe e o filme em questão, narrativa sobre os horripilantes assassinatos cometidos pelos Irmãos Necrófilos, no período de 1991-1995, nos confins do Rio de Janeiro, é a comprovação cabal da nossa capacidade de ir muito além. E sim, o filme se baseia na realidade.

Ao longo dos 97 minutos de Macabro, acompanhamos a trajetória de Téo (Renato Goes), protagonista que interpreta um sargento perturbado não apenas pelos terríveis crimes que precisa solucionar, mas também por seu passado, mais recente e o aparentemente sublimado da juventude, ambos em profusão durante o seu retorno para o interior do Rio de Janeiro, na função de investigador responsável por resolver de imediato os crimes que estão aterrorizando a população, causando furor na mídia jornalística sensacionalista e deixando o governador altamente estressado, tamanhas as cobranças internas e externas ao seu gabinete. É tensão para todos os lados e a dupla de roteiristas formada por Rita Glória Curvo e pelo (competente) Lucas Paraízo sabe o potencial do conteúdo dramático que possuem, mas não conseguem construir uma tessitura narrativa que esteja no mesmo nível do filme. É um argumento excelente, concebido por esmero estético, mas opaco na construção de seu protagonista, falho em suas ações e diálogos.

Antes de conferi-lo, tive uma experiência incomum ao ler “determinada” crítica sobre a produção, um texto que acreditei ser uma sinopse estendida com informações de bastidores, o velho e útil release. Os breves traços opinativos e analíticos tratavam dos problemas na construção de um personagem que impede o tom macabro que está no próprio título. Tem-se muito da trajetória pessoal de Téo, algo que até compreendemos, haja vista o mergulho numa narrativa ficcional que se baseia em acontecimentos da vida real, mas possui personagens, figuras laboratoriais criadas para atender a dinâmica interna do filme. Não dei importância e segui para a minha sessão na convicção de que ali haveria uma história de horror genuína, intensa e apavorante. E de fato há muito potencial em Macabro, mas tal como dito no texto lido previamente, o protagonista ganha muito espaço com os seus dramas pessoais e impede o horror de exercer a sua função dramática, numa transformação da história dos Irmãos Necrófilos em um dos panos de fundo da trama.

Isso não impede que o filme funcione e demonstre a sua capacidade de assustar. Há algumas cenas bem impactantes em Macabro, no entanto, ou Marcos Prado não conseguiu driblar as inconsistências do roteiro ou a dupla responsável pelo texto teve o material tragicamente modificado de sua suposta estrutura inicial. Não saberemos. Assim, diante do que temos, posso afirmar que o espectador vai se encontrar com uma história potencialmente assustadora. E não apenas pelo clima sobrenatural que nunca fica delineado, mas parece manter uma onipresença inquietante. Macabro também é uma narrativa sobre a atual chaga do racismo enraizado pelas entranhas da sociedade brasileira, não apenas dos grandes centros urbanos, de ondem Téo se deslocou após matar “acidentalmente” um homem negro, confundido em sua varanda ao manusear uma furadeira para realizar a manutenção num trabalho doméstico, ferramenta que de longe, parecia muito com uma arma de fogo. Afastado, ele agora precisa lidar com questões tangentes.

E será no interior do Rio de Janeiro que ele confrontará seu passado, inclusive a tensa relação familiar mau-resolvida com seu tio, além de testemunhar e se encontrar sempre um passo atrás diante da tenebrosa sequência de assassinatos da dupla necrófila. Moema (Juliana Schalch) é a sobrevivente do primeiro ataque, estuprada, mas que mesmo diante de tudo, consegui escapar para lembrar eternamente da violência que ceifou a vida de seu noivo, ambos em diversão num banho de cachoeira que se transformou numa horripilante cena de crime. Na investigação, Téo descobre conexões com o padre, suspeitas de abuso sexual e também o histórico de tensão racial que teria alijado não apenas os irmãos, mas o pai alcoólatra abusivo, homem que aparentemente agride a esposa constantemente e construiu um lar para os filhos que representava uma visão infernal de vida, existência acompanhada de dor, miséria, preconceito e outras celeumas tão macabras quanto os crimes cometidos pelos jovens, “monstros criados pelo sistema”.

Importante ressaltar que apesar de coadunar com essas transformações bastante realistas de inocentes em monstros, esse é um discurso que não está apenas nas entrelinhas do roteiro, mas exposto nos diálogos entre os personagens em momentos pontuais. Na busca por entendimento diante da situação de violência extrema, Téo analisa os moradores locais, o que inclui o seu tio, como “racistas de merda”, responsáveis pela dor e caos trazido para o lar dos “Irmãos Oliveira”, Ibraim e Henrique, os “personagens” da vida real, conhecidos por assassinar brutalmente e violar o cadáver de suas vítimas, além de deixa-las em cenas criminosas demasiadamente macabras, algo tenebroso para compreensão, mas humanamente possível, como podemos observar na histórias de assassinos em série, documentadas e transformadas em livros e filmes. Macabro não é um filme que se preocupa em explicar tudo de maneira redonda, ponto favorável que nos permite refletir sobre a sua estrutura sem exatidões. Há passagens discretas que mencionam o sobrenatural, mas o horror aqui é também oriundo das profundezas de mentes perturbadas.

É o horror humano, sem dedicação exclusiva ao fantasmagórico. É, se observarmos os relatos jornalísticos sobre a história em questão, um misto de sensações, pois é possível observar nos relatos uma sequência de fatos contados com o tom de pavor diante da brutalidade dos crimes, também explicada por outros através de interpretações sobre presenças demoníacas e participações de entidades espirituais que aparentemente ajudaram a dupla de irmãos a cometer atos tão discrepantes com o que concebemos enquanto ideal de civilização. Conta-se, sobre a história real, que desde cedo um dos garotos possuía inclinações para o bizarro. Um deles, inclusive, havia matado animais para relações sexuais com as carcaças, além de ter matado uma criança, ter sido preso e por ser de menor, ficado preso até os 18 anos. O filme aproveita a brecha judicial para fazer uma crítica ao sistema, mas também falha por tratar de maneira descuidada o tema que gera muita polêmica.

Ademais, para contar a sua história, Marcos Prado contou com uma equipe técnica bastante dedicada e eficiente. Não há trecho algum em Macabro que nos permita apontar qualquer descuido estético. A direção de fotografia de Azul Serra é de uma beleza impactante. As cenas diurnas contemplam a amplidão da paisagem, uma zona cheia de Mata Atlântica e muitos rochedos, local que transmite ao espectador a sensação de isolamento da cidade, espaço favorável aos irmãos criminosos e territorialistas, conhecedores natos da região tomada por florestas e paisagens imbricadas. O contraste com as cenas noturnas reflete um jogo audacioso de imagens, com iluminação soturna e uso de muitos bons recursos que permitem aos espectadores a contemplação da ação de maneira muito clara, mesmo diante dos momentos que refletem a escuridão de uma ampla dimensão geográfica sem sinalização, placas de trânsito, etc. Na seara sonora, Plínio Profeta entrega a sua eficiente trilha sonora original, acompanhada pelo design de som de Tomas Alem, igualmente adequado ao clima do filme.

Assim, reforço: Macabro é um exercício estético retumbante, falho na construção do principal catalisador de toda a sua esfera dramática: seu protagonista. Com um herói tradicional e padrão concebido equivocadamente, outros elementos da narrativa também perdem força, pois o ponto nevrálgico apresenta inconsistências que não permitem a sublimação dos problemas. Com uma história poderosa em mãos, os realizadores delineiam, como já mencionado, a capacidade do cinema brasileiro em continuar investido no horror enquanto gênero cinematográfico nacional, parte da nossa história artística constantemente colonizada, presa ao que demanda os esquemas industriais estrangeiros. Editado de maneira a entrelaçar a narrativa com excertos de jornais da época em que os Irmãos Necrófilos, nome do caso batizado pela mídia, causavam o terror no interior do Rio de Janeiro, o filme revela o quão a violência é potência para a construção de narrativas ficcionais que nos revelam os lados mais tenebrosos da mente humana, além de permitir que expurguemos, do lado de cá da tela, os medos sociais que gravitam em torno de nosso cotidiano sitiado pelo pânico que nos diz a todo instante: “tenha medo, tenha muito medo”.

Macabro — Brasil, 2020
Direção: Marcos Prado
Roteiro: Lucas Paraízo, Rita Glória Curvo
Elenco: Renato Goes, Juliana Schalch, Flavio Bauraqui, Paulo Reis, Amanda Grimaldi, Guilherme Ferraz, Diego Francisco, Eduardo Tomaz, Juliana Schalch, Flávio Bauraqui, Paulo Reis, João Pydd, Claudia Assunção, Osvaldo Mil, Thelmo Fernandes
Duração: 97 min.

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