O Brasil do início do século XX era palco de profundas transformações sociais, políticas e culturais. O modernismo começava a tomar forma, trazendo novos talentos literários que procuravam romper com as tradições do passado. Nesse contexto, destaca-se Madame Pommery, um romance acima da média, escrito por Hilário Tácito, publicado em 1922, uma narrativa muitas vezes negligenciada em análises da literatura brasileira. Em suas 150 páginas, o livro é um importante retrato da época e oferece uma rica reflexão sobre questões sociais e de consumo que perpassam o seu contexto histórico. Para compreendermos o livro é imprescindível situá-lo no contexto em que foi escrito. A década de 1920 foi marcada por uma série de inovações, tanto na literatura quanto na sociedade brasileira. O romantismo, que predominou na literatura do século XIX, dava lugar a novas correntes literárias, que buscavam a autêntica expressão da realidade brasileira.
Nesse marco, Tácito se insere como um autor que, embora em diálogo com essas novas propostas, traz em seu romance uma série de elementos que dialogam com as tradições anteriores. O Brasil enfrentava ainda as consequências da Primeira República, marcada por instabilidades políticas e por um crescimento econômico que não chegava a abranger todas as camadas sociais. A elite urbana se consolida, e o consumo começa a ser uma prática central na vida dos indivíduos. É neste pano de fundo que se desenvolve a história de Madame Pommery, uma trama que explora a vida e os desejos da protagonista, Clara, uma mulher que busca se afirmar em uma sociedade dominada por normas patriarcais.
Clara é uma figura emblemática que reflete as nuances da mulher moderna nas primeiras décadas do século XX. Desde o início da narrativa, Clara se apresenta como uma mulher decidida, que não se contenta com os papéis tradicionais da esposa submissa. Sua relação com o mundo do vinho, simbolizado pela figura de Madame Pommery, revela suas ambições e seu desejo de se libertar das amarras sociais. Hilário Tácito constrói Clara como uma personagem complexa, marcada por um desejo de conquista que vai além das normas da época. A busca pelo prazer e pela autonomia feminina, refletidas em seu envolvimento com o universo do vinho, que remete ao luxo e à sofisticação e nos mostram como a protagonista se insere em um ambiente de opulência que, paradoxalmente, também representa uma forma de libertação. O vinho, e a figura de Madame Pommery, que em vida foi uma bem-sucedida produtora de champanhe na França, servem como metáforas para a emancipação feminina.
O vinho é um elemento central no romance, transcende a mera função de bebida e se torna um símbolo das aspirações de Clara. Através do universo dos vinhos, Tácito explora as nuances do prazer e do consumo, que ganham relevância em um contexto de modernização. Madame Pommery, a figura que dá nome à obra, não é apenas uma referência à produtora, mas representa o poder feminino, a capacidade de uma mulher de se destacar em um mundo dominado por homens. Este simbolismo é reforçado pela forma como o consumo é retratado na narrativa. O vinho é relacionado ao desfrute da vida, à alegria e à frivolidade, mas também à crítica social. Tácito não apenas celebra o vinho, mas questiona a relação dos indivíduos com o consumo, especialmente no que diz respeito ao papel das mulheres nesse processo. A emancipação de Clara está atrelada a sua capacidade de navegar nesse universo luxuoso, preponderante para a definição de suas dimensões psicológicas e sociais.
Outro ponto que se destaca é a estética modernista. Madame Pommery é também interessante por sua estrutura narrativa, que apresenta características modernistas, como a fragmentação temporal e a multiplicidade de vozes. Tácito utiliza um estilo que desafia as convenções narrativas do século XIX, apresentando uma narrativa não linear que reflete a complexidade da vida contemporânea. É uma escolha estética permite que o leitor mergulhe na psique de Clara, compreendendo suas angústias e suas motivações de maneira mais profunda. O uso de diálogos e descrições vívidas cria uma atmosfera envolvente, onde o leitor é transportado para o universo das festas, dos salões e dos encontros sociais que caracterizam a elite carioca da época. Essa ambientação, rica em detalhes, não apenas serve ao propósito estético, mas também denuncia as superficialidades e contradições de uma sociedade em transformação.
Em linhas gerais, Madame Pommery de Hilário Tácito é uma obra que, apesar de sua publicação há mais de um século, mantém uma relevância significativa na discussão das questões de gênero, consumo e identidade. Através da figura de Clara e do simbolismo do vinho, o autor constrói uma crítica social que ressoa com os dilemas modernos das mulheres contemporâneas. Ao contextualizar o romance dentro do Brasil da década de 1920, percebemos como Tácito utiliza a literatura como um espaço para a reflexão sobre a condição humana e as relações sociais. Mais que simplório para ser tão pouco conhecido quando comparado aos demais autores de sua época, seu livro é um rico testemunho de uma época em transformação que nos permite refletir a perpetuação de velhas e novas formas de dominação e o surgimento de novas vozes femininas em busca de autonomia. Uma leitura breve, dinâmica e atrativa.
Madame Pommery (Brasil, 1922)
Autor: Hilário Tácito
Editora no Brasil: Ática/Série Princípios
Páginas: 150