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Crítica | “Madame X” – Madonna

por Leonardo Campos
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Já se passaram quatro anos desde o lançamento do álbum Rebel Heart. As dúvidas pairavam no ar. Será que Madonna vai encerrar a sua carreira? Pressionada pelos que acham que ela deve aceitar o envelhecimento e deixar de ser provocadora, a artista resolveu fazer da experiência em Portugal uma narrativa. Esperta, transformou a sua nova morada num espaço para captação de elementos culturais para a realização de sua nova incursão musical, Madame X, nome que também batiza o alter-ego mais recente. A capa é simbólica: morena, Madonna lembra Frida Kahlo.

Na era dos extremos, no entanto, apesar da imagem com a boca costurada, em seu álbum, a camaleônica se recusa a ficar calada. Toca nas feridas da sociedade contemporânea doentia, atualmente desvirtuada por uma coalização de pensamentos racistas, misóginos e homofóbicos, algo que nunca foi novidade num mundo de conflitos opiniáticos, mas que no momento presente são chancelados por representantes políticos e seus seguidores alienados, massa de manobra de uma sociedade embrutecida, burra e estúpida.  É a artista de Like a Prayer. É a provocadora de Justify My Love. É a mescla de musicalidades de La Isla Bonita. É a debochada de Bitch I’m Madonna. É a apaixonada de True Blue e a alegórica metralhadora de críticas sociais de American Life. É Madonna, como sempre, múltipla.

Em Madame X encontramos a fusão da guitarra clássica e da guitarra portuguesa, instrumentos basilares para o fado, ritmo português que apresenta ressonâncias dos mouros. Presente nas cortes europeias desde o século XVI, o fado é um marco cultural no país e possui ampla dimensão popular. Junto ao ritmo temos o reggaeton, estilo musical enraizado entre os latinos, conhecido por seus toques que mesclam salsa, hip-hop, funk e música eletrônica. Em sua composição, as faixas trazem questões conectadas ao seguinte conjunto de palavras-chave: sexo, romance, festejos, ostentação, cultura urbana, religião drogas, racismo, criminalidade, etc., isto é, espaço discursivo para os conteúdos que denunciam os males do nosso tecido social em constante tensão. Anexado ao reggaeton, há o dembow, estilo jamaicano que mescla sintetizadores, sampler, baixo e tambores. A base para estruturar tudo isso é o pop.

Em seu novo trabalho, o que podemos observar de imediato é que Madonna acompanhou os rumos musicais de cada década que viveu. Isso não impede, no entanto, de ainda escutar algumas pessoas alegando que “ela era legal nos anos 1980”. Será que uma artista deve ser monotemática? Isso não é a cultura do conformismo? Rememorar os bons tempos é maravilhoso e por isso Like a Virgin, Material Girl e Vogue estão constantemente em suas turnês. Importante, no entanto, é a percepção de que é preciso avançar. Ganhar novos rumos e reciclar antigos discursos. Quem consegue contemplar um álbum indo além do superficial perceberá que ainda há muito dos anos 1980, 1990 e 2000 em Madame X.

O mais difícil, por sua vez, é fazer as pessoas compreenderem que para se manter viva no terreno industrial, Madonna precisou evoluir juntamente com os movimentos culturais e políticos. Não dá para continuar relevante fazendo a mesma coisa de sempre. Vivemos a tal “sociedade líquida”, marcada pela pressa, agilidade da informação e compressão do tempo, bem como emergência do “novo”. Se não acompanha o ritmo, fica para trás. Madonna, inteligente e sábia, sempre soube acompanhar os elementos de seu tempo e descolar-se do contemporâneo para observar todas as esferas que a circundam. Algo me diz, inclusive, que Madonna já foi leitora de Giorgio Agamben, em especial, do elucidativo O Que é o Contemporâneo e Outros Ensaios.

Em seus 56 minutos, (a edição padrão), Madame X trata dos temas que sempre estiveram presentes ao longo da carreira musical de Madonna. Há ampla presença de texturas acústicas e experimentações eletrônicas que causam estranheza inicialmente, mas depois são compreendidos quando adentramos de vez no conceito do álbum. O que a produção reforça é a autonomia de uma mulher que ainda provoca e demonstra que idade não é um empecilho quando ainda se tem muito o que dizer. Sem as pressões comerciais das iniciantes e sobrevivente de uma cultura musical excludente, Madonna dribla o preconceito e atinge seus antigos seguidores juntamente com as novas plateias. O resultado é provocante. Inicialmente estranho, complexo, confuso, algo que nos pede algum tempo para “digestão auditiva” completa.

Considerado pelas primeiras críticas dos meios de comunicação hegemônicos como ousado, irreverente e grandioso, Madame X é a prova cabal da artista como a maior realizadora no campo da música pop, terreno conhecido por ser superficial, banal e transformador de artistas, principalmente as mulheres, em subprodutos descartáveis e passageiros. Em suas quatro décadas de presença musical, Madonna dá o recado e demonstra-se relevante. Ciente de suas limitações, ela sabe que não é a grande voz, tampouco o padrão de beleza da visualidade ocidental. Isso não impediu, no entanto, que investisse em si mesma e fosse um exemplo positivo e poderoso de alguém que sabe conduzir muito bem o seu marketing pessoal.

Feitos os elogios e ponderas as convicções, vamos ao passo a passo do álbum. Tudo começa com a empolgante Medellín, faixa que faz uma homenagem ao local de nascença do cantor Maluma, queridinho atual da artista que tal como sabemos, gosta de fazer parcerias com a juventude pop, tendo em vista manter-se relevante e conectada com a evolução da musicalidade e dos elementos que conduzem a indústria fonográfica contemporânea. Em compasso simples, isto é, com divisão quantitativa do grupo de sons que acompanharão a canção em suas batidas e pausas, Medellín é acompanhada por 92 batidas por minuto. Um momento doce, suave, feminino, religioso, crítico, persuasivo e agradável do álbum que logo mais, adentra em algumas faixas que ficam entre a “farofa” e as reflexões amplamente politizadas.

Dark Ballet e God Control, dão continuidade ao álbum. Ambas foram produzidas em parceria com Mirwais Ahmadzai, faixas em diálogo constante, antecipadoras de Future, faixa estruturada juntamente com Diplo, num dueto politizado de Madonna com o rapper Quavo. Logo mais, adentramos na sonoridade de Batuka, canção acompanhada por percussão intensa, ritmos que nos remete aos sons africanos e presença de violinos que demarcam a mixagem de estilos. O uso do auto tune, cabe ressaltar, faz-se presente não apenas para fazer o canto andar, mas possui dimensão simbólica na mescla de sonoridades propostas por Madonna.

Mais adiante, a artista entrega Killers Who Are Partying, Crave (em parceria com Swae Lee), Come Alive e Crazy, antecessoras da balada chiclete Faz Gostoso, um dos hits mais comentados do álbum, feito exclusivamente para as pistas de dança. Dueto com a cantora brasileira Anitta, o single traz elementos do funk e Madonna cantando em português europeu, algo que aliás, ocorre em outras faixas, num álbum que pode ser considerado praticamente trilíngue, haja vista a presença de trechos em espanhol. Versão da canção de Blaya, cantora luso-brasileira, a faixa é uma da mais midiáticas e populares do material, apesar de pouco interessante em termos musicais. Madonna, já estabelecida e dona de faixas como True Blue, La Isla Bonita, Masterpiece e outros hinos pode se gabar de fazer uma bobagem de vez em quando.

Prova disso é que no próprio álbum Madonna traz mensagens políticas e importantes em meio ao fluxo de ritmos dançantes. Numa determinada faixa, a artista expõe trechos do discurso de Emma González, ativista que teve uma experiência aterradora no Massacre de Stoneman Douglas High School e tornou a sua história um incentivo para manter-se na linha de frente das discussões armamentistas estadunidenses. Membro da Neve Again MSD, a jovem tornou-se um ícone na defesa do controle da banalização das armas, fetiche que inclusive ganhou ramificações e espaço no Brasil, dominado por ideologias extremistas e seguidores aparentemente descerebrados.

O álbum segue rumo ao desfecho com Bitch I’m Loca, outro dueto com o colombiano Maluma, dançante e viciante, mas sem o mesmo escopo de Medellín. I Don’t Search I Find e I Rise atam as pontas do álbum e encerram a audição, nos preparando auditivamente para o que será o espetáculo visual da Madame X Tour, nova incursão nos palcos realizadas por uma artista memorável e em constante renovação. Gravado ao longo de 18 meses entre Nova Iorque, Londres, Los Angeles e, principalmente, em Lisboa, espaço geográfico que lhe deu algumas ideias para a composição musical e visual do álbum, Madame X é uma incursão por sonoridades leves e contemplativas, sem deixar de ser impactante.

Sempre que vou escrever sobre Madonna, sinto-me pressionado com o desprendimento do lado admirador, numa busca utópica da tal crítica imparcial, algo que algumas concepções de análise ditam, mas que sabemos ser convicção idiota de quem não entenda nada de gênero discursivo. Não há crítica neutra. Há bom senso de quem escreve. Quando estive imerso na produção de Madonna Múltipla – Cinefilia e Videoclipe, busquei ser cuidadoso o tempo inteiro, pois como diz Jeanne Fravet-Saad no ensaio “Ser Afetado”, somos afetados pelo que nos cerca.

O que isso quer dizer e qual a relação com a reflexão e Madonna? Simples: os videoclipes, as canções e a biografia amplamente documentada de Madonna tende a nos fazer mergulhar profundamente num processo de contemplação que pode ser um mergulho denso demais, o que pede observação, cuidado e ponderação, algo que não impede a afetação por parte de quem escreve, mas pede-se cautela para não se deixar levar por caminhos alienadores. Há sempre a cobrança: “você é fã e já escreveu um livro sobre Madonna, claro que sempre vai puxar a sardinha para a artista”. Reafirmo que não é bem assim.

Basta acompanhar as críticas dos álbuns antecessores da artista para perceber o equilíbrio no ponto de vista. Confesso o valor musical de algumas incursões de Madonna, mas por exemplo, não me conectei devidamente com as ideias de Erotica e Ray of Light, dois álbuns bem conceituais, mas que digamos, não “faz meu tipo”. Isso não me impede de reconhecer o valor artístico de cada um, poderosos como Madame X, álbum intenso, irreverente, relativamente esquisito, mas necessário para a música pop, para a reafirmação de Madonna enquanto uma das mulheres artistas mais relevantes das últimas décadas e a comprovação absoluta de que o pop pode mesclar entretenimento e engajamento político sem precisar perder a classe e o conteúdo. Madonna é e sempre será múltipla, épica e única.

Aumenta: Medellín.
Diminui: I Rise.

Madame X
Artista: Madonna
País: Estados Unidos.
Elenco: 14 de junho de 2019.
Gravadora: Interscope.
Estilo: Pop, Pop Latino, Trap, Reggaeton

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