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Crítica | Madonna – 60 Anos, de Lucy O’Brien

por Leonardo Campos
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Madonna – 60 Anos é uma biografia não autorizada de uma das artistas mais versáteis e talentosas da produção cultural desde os anos 1980. Nascida em 16 de agosto de 1958, Madonna Louise Ciccone começou a dar os seus primeiros passos em 1979, numa viagem a Paris para um desempenho como backing vocal e dançarina, projeto capitaneado por Patrick Hernandez, algo que não deu muito certo. Após algum tempo de insistência e vários testes para pequenos papeis em filmes e espetáculos de dança, Madonna conseguiu emplacar seu primeiro single, Everybody, em 1982, parte integrante do álbum Madonna, lançado no ano seguinte.

Escrita por Lucy O’Brien, jornalista e biógrafa, especialista em analisar a trajetória de mulheres na música, a versão atualizada do livro de 2007, Madonna – 50 Anos reformula alguns trechos e busca dar conta da última década de atuação da artista em suas incursões profissionais, pessoais e midiáticas. Com ideias que coadunam com o que afirmo em Madonna Múltipla – Cinefilia e Videoclipe, desde os anos 1980, Madonna desenvolve uma carreira de feixes múltiplos: cantora, atriz de cinema, de teatro e de videoclipe, produtora, empresária, escritora e, mais recentemente, diretora de cinema. Interessada em operar mudanças e gerar polêmica em torno de seus trabalhos, produções que geralmente versam sobre temas variados, mas que gravitam em torno do feminino, da homossexualidade, da política e da religião, a artista conseguiu longevidade no efêmero jogo da cultura pop.

Ao longo de seus 36 anos de participação ativa no âmbito da cultura, Madonna, de forma bastante inteligente, conseguiu dialogar com a cultura da mídia e com a sociedade do espetáculo, usando-as em prol de seu trabalho, mesmo que muitos não tenham acreditado que ela passaria do primeiro álbum. Quando Madonna se estabeleceu, os videoclipes, por exemplo, ainda eram “novidade” para a indústria do entretenimento, algo a ser remodelado diante das experiências anteriores deste gênero audiovisual.

Sua carreira veio à tona numa época de grandes empreendimentos na seara do audiovisual, e um deles, o surgimento da MTV, ajudou a engrenar a carreira da artista sempre ambiciosa e atenta ao mercado, ciente de que apostar no formato do videoclipe para criação da sua imagem perante a mídia era um jogo favorável para manutenção de seu status. Conhecida como a Rainha do pop, constantemente mudou a sua imagem entre 1980 e 1990, reinventando-se na efêmera malha da cultura pop, mantendo certa autonomia na indústria fonográfica. E assim uma carreira longa e produtiva se estabeleceu: em Like a Virgin, conforme apontado pela biógrafa, “ela uniu e cicatrizou as duas metades”, isto é, “a Maria, virgem abençoada, e Maria Madalena, a prostituta”. Em True Blue, “era o álbum que anunciava uma nova Madonna, mais suave e próxima do segmento hollywoodiano, surgindo em fotos e entrevistas com o visual idêntico ao de Marylin Monroe”. Ademais, detalhes e histórias sobre a polêmica em Like a Prayer, Erotica, o lado materno com o nascimento da primeira filha, o sucesso crítico e comercial de Evita, o lançamento do conceitual Ray of Light, predecessor de Music, American Life, Confessions on a Dance Floor, Hardy Candy, MDNA e Rebel Heart.

Detalhes mais ligados ao release qualquer bom jornalista pode traçar. O que destaca o trabalho de Lucy O’Brien enquanto boa biografia é a sua análise dos dados, sem detratar, mas também sem aperfeiçoar uma Madonna inatingível, perfeita, algo que sabemos não fazer parte de uma escrita séria e comprometida. A biógrafa é bastante pontual. Delineia pontos que inclusive concordo veementemente, sem deixar de ser honesta quando reforça a falta de precisão de alguns poucos trabalhos e a qualidade imensurável de outros. Em seu exercício de reconstrução de uma trajetória alheia, a autora revela o processo criativo de Madonna, o que mais uma vez me faz reafirmar o que foi dito em outra publicação, desta vez, Êxodos – Travessias Críticas, terceiro capítulo de uma trilogia iniciada com o anteriormente citado “Madonna Múltipla”: a multiplicidade da artista como combustível para a manutenção do seu legado.

Dentre os melhores trechos, podemos destacar a metalinguagem e a postura cinéfila como uma prática da vida pessoal de Madonna, que se mistura com o seu eu público, pois a artista múltipla, segundo O´Brien, possui “um lado cênico fruto de uma invenção”, algo baseado “num desejo de projeção engenhosa, alimentada por filmes hollywoodianos, musicais da Broadway e poesia”. A biógrafa complementa que é como se “Madonna tivesse fermentado tudo dentro dela durante anos, até que fosse encontrada a maneira certa de dar vazão ao seu talento”.

Ao longo da biografia, a autora apresenta alguns dados sobre a vida da artista que nos ajudam a identificar a quantidade de referências artísticas utilizadas em músicas, turnês e videoclipes. Um desses fatores é o processo cuidadoso de criação, pois de acordo com as informações, no momento em que Madonna é apanhada em processo criativo, a artista “esquece de si mesma”. Ainda tem mais. Ela afirma que Madonna é a soma de todas as influências que recebeu, pois se apropria do que é recepcionado enquanto espectadora do cinema, ouvinte da cultura disco, leitora de obras literárias, bem como contempladora de artes visuais em geral, alguém sempre a processar e expressar toda informação no meio do caminho.

Madonna assume, de acordo com a biografia, a sua admiração pela poesia de Anne Sexton, os escritos de Virginia Wolf e Sylvia Plath, as obras de Frida Kahlo, pois assim como o trabalho destas mulheres, a sua obra era frequentemente autobiográfica. Para a biógrafa, não é de se surpreender que uma das referências para o estilo Madonna tenha sido a artista Martha Graham, “cujo trabalho é centrado na imagem feminina”. Neste mix de referências e citações, ainda há espaço ainda para os poemas de Emily Dickson em seu processo de criação de coreografias. Durante o período de isolamento, antes da fama, Madonna mergulhou fundo em estudos históricos, na mitologia grega e na cinematografia para expressar algo especial sobre a condição da mulher estadunidense. Pearl Lang, na época, criou um número de dança com Vivaldi e ela foi a principal dançarina. Há numerosos casos e ilustrações que reiteram a sua importância enquanto ícone da cultura pop e da indústria fonográfica, material vasto que não cabe em sua totalidade nesta crítica, mas será reforçado ao passo que os álbuns do especial sobre a cantora tornarem-se disponíveis ao longo das próximas semanas, algo a ser somado aos diversos textos já publicados sobre Madonna nos últimos anos.

Publicado pela Editora Agir, a nova edição possui 536 páginas que pecam apenas pelo uso restrito de imagens, algo não perdoável para a biografia de uma artista múltipla e conhecida por sua camaleônica trajetória visual no campo da cultura pop. Isso, entretanto, é algo perdoado quando deparamos com o quesito pesquisa, pois a jornalista traça criticamente cada detalhe do texto, não apenas expondo Madonna, mas dando também seu olhar interpretativo. O trabalho é fruto de pouco mais que 14 anos de entrevistas com afetos e desafetos, bem como profissionais que já trabalharam ou ainda atuam nos espetáculos e produções da cantora, além de amigos de infância e familiares.

Construída em camadas e fases pelo cuidadoso relato da biógrafa, percebemos a evolução de uma artista tal como os bons manuais de roteiro. Há informações de caráter físico, social e psicológico, mudanças bruscas e também graduais, anseios e desejos, recusas e declinações. Com 60 anos de idade e 36 de polêmicas, Madonna é um caso raríssimo no bojo da cultura pop, um campo conhecido por ode ao prosaico e o banal, espaço ilustrado por artistas passageiros que funcionam de acordo com interesses inconstantes de seus respectivos públicos.

Quando escreveu Madonna – 50 Anos, Lucy O’Brien fez algumas previsões e retornou para expor alguns acertos. Dessa vez, as apostas estão na mesa mais uma vez. Será que Madonna tem fôlego para continuar relevante por mais uma década enquanto artista atuante? A resposta é imprecisa, pois previsão do futuro não é bem a minha especialidade, mas afirmo que se a artista decidir parar por agora, algo que duvido veementemente, não terá sido cedo, pois o seu legado é algo vivo e flamejante dentro do circuito de produções culturais contemporâneas. Madonna foi, é e provavelmente continuará sendo relevante mesmo quando for apenas “história para ser contada”.

Madonna – 60 Anos (Estados Unidos, 2018)
Autor: Lucy O’Brien
Editora no Brasil: Agir
Tradução: Diego Affaro
Páginas: 536

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