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Crítica | Madrugada da Traição

por César Barzine
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Na obra-prima Os Brutos Também Amam, o cowboy Shane se introduz na residência e na vida de uma família que mora no campo, construindo, através da vivência de todos eles, o desenvolvimento do filme. Madrugada da Traição possui um ponto de partida semelhante, que é a chegada de uma nova pessoa para viver com um casal de mexicanos, alterando a vida daqueles que lá se encontram. Porém, se Os Brutos Também Amam é carregado por um clima meio idílico e pela harmonia entre as relações de Shane e aquela família, em Madrugada da Traição há o exato oposto: não existe brilho nenhum naquele lugar e nem nas pessoas que o habitam. O cowboy em questão se trata de um criminoso, sujeito não muito admirável, assim como o casal que o acompanha. São pessoas degradantes que carregam vidas miseráveis, onde um não pode confiar no outro.

O protagonista Santiago não é, ao contrário dos grandes clássicos do western americano, um herói virtuoso, porém ele também não encarna a persona maquiavélica de um vilão absoluto. Santiago é um homem de ética baixa, mas jamais totalmente desumano ou sádico. O final do filme demonstra bem isso, apresentando a ambiguidade de suas ações. A personalidade dele lembra o personagem Tuco de Três Homens em Conflito, com traços caricatos e uma imagem nada atraente. Arthur Kennedy, que o interpreta, consegue oscilar entre momentos mais despojados e sérios, mas sempre mantendo a impressão de um homem perigoso por perto.

Após se recuperar de uma lesão, Santiago conhece Maria, enquanto esta lava roupa num lago. Interpretada por Betta St. John, a jovem se demonstra pouco simpática com aquele homem. Suas expressões manifestam uma frieza durante boa parte do filme. Ao contrário dos outros personagens que possuem muitas feições cartunescas, na face de Betta habita uma quietude que guarda a aflição dela com sua vida. A jovem se encontra numa situação que é um pouco parecida com a que passa a personagem de Ingrid Bergman em Stromboli, fazendo com que a presença dentro de um ambiente árido e ordinário venha acompanhada pela agonia de um cotidiano amargurado. Maria possui enorme desencanto pela vida que leva ao lado de seu marido, com quem acabou tendo um casamento abrupto por falta de opção melhor, e agora se encontra presa nessa condição deprimente. A interpretação de Betta transparece muito bem esta dor, indo de uma inexpressividade até momentos catárticos com longas falas em que ela exterioriza todo o seu incômodo. Betta solta uma ferocidade numa desenvoltura que é totalmente explícita sobre a desgraça constante da vida que possui.

Para completar, há Manuel, interpretado por Eugene Iglesias, com uma atuação que é a que mais se altera, dosando aspectos conflitantes de sua personalidade. Mas antes de tudo, Manuel é um homem ridículo, quase todas as facetas dentro dele se expressam de modo negativo, seja em seu senso ético ou na postura eufórica que o personagem carrega. Quando ele se encontra com Santiago pela primeira vez, Manuel parece ser apenas um trabalhador comum, mas no desenrolar da trama ele manifesta uma versátil personalidade. Porém, essa heterogeneidade acaba se entrecruzando com uma boçalidade que o torna um personagem menos sério. A figura de Iglesias se exalta completamente na visita ao bar com Santiago, extraindo um tom burlesco em momentos de empolgação; bate em Maria com enorme hostilidade, mas também sem demonstrar alguma seriedade; e, entre outras diversas situações, Manuel se coloca numa posição antagonista em suas tentativas de matar Santiago. Tudo isso sempre acompanhado de um teor caricato que inverte a imagem de homem comum inicialmente apresentada.

Na primeira sequência de Madrugada da Traição, é exposto por entre diálogos e monólogos uma devoção religiosa vinda de Santiago, que se entrega aos signos da fé. Logo depois de um crime cometido, o bandido, quase à beira da morte, sucinta a graça de Deus e o coroamento de São Pedro. Ele se recupera e retorna à vida de homem mundano e imoral. No filme, a solenidade religiosa dá espaço à melancolia da vida carente, à brutalidade do desejo de matar e roubar e aos sons de valsas mexicanas que dão o clima do longa em alguns momentos. O frescor e o formalismo do western clássico são substituídos pela vida seca que ganha um alívio ao ritmo da música local e da dança estonteante, formando a identidade mexicana da obra.

A grande marca de Madrugada da Traição é toda uma multiplicidade que se desenrola, seja ela no desenvolvimento dos personagens ou na própria trama. A atuação de Arthur Kennedy passa pelo esplendor da fé, os desajustes de sua simpatia, o rigor de um criminoso e a desolação do homem sem lugar no mundo. Enquanto Betta St. John transborda amargura em um silêncio azedo até explodir com gritos que proclamam o desejo de encontrar uma nova vida. E Eugene Iglesias, quase sempre desengonçado, ri, agride e chora em suas imposturas. 

No desfecho do filme, a trama se renova a cada momento, invertendo as posições de cada personagem com o andar dos conflitos presentes. O terceiro ato é explosivo, criando um intenso envolvimento com o espectador graças ao dinamismo sustentado pelo perigo que ameaça a cada instante. Por fim, a narrativa se encerra num arco circular, o protagonista e o casal retornam às ligações que tinham antes de se conhecerem. Mas há um novo aspecto em volta de tais retornos. Maria e Manuel, apesar de terem tido graves turbulências, estão juntos à frente de um renovado caminho. Enquanto Santiago está caído, novamente, quase à beira da morte. E uma narração surge, coroando ele sobre a graça de São Pedro.

Madrugada da Traição (The Naked Dawn, EUA, 1955)
Direção: Edgar G. Ulmer
Roteiro: Julian Zimet
Elenco: Arthur Kennedy, Betta St. John, Eugene Iglesias, Roy Engel, Francis McDonald, Charlita, Tony Martinez
Direção: 82 minutos.

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