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Crítica | Magma, de João Guimarães Rosa

A primeira rosa de um exuberante jardim.

por Luiz Santiago
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No ano de 1936, a Academia Brasileira de Letras promoveu um concurso de poemas. Inscrito sob o número 8, um jovem poeta mineiro de 28 anos, natural de Cordisburgo, enviou para a disputa o seu livro Magma, com 63 poemas. Em 22 de novembro daquele mesmo ano, o imortal Guilherme de Almeida enviou o seu relato para a comissão julgadora da Academia com as seguintes palavras (cortei os parágrafos em que o escritor aborda certos componentes dos poemas, como numa simples análise, e deixei apenas os trechos em que comenta diretamente sobre a qualidade da obra como um todo):

Vinte e quatro foram os originais, a mim apresentados, que este ano se inscreveram no Concurso de Poesia da Academia.
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A todos esses trabalhos dediquei, na leitura, uma firme, livre e igual atenção. Fiz-me assistir, no cuidadoso exame, por um único, bem simples critério: buscar e premiar poesia, poesia autêntica e completa, que é beleza no sentir, no pensar e no dizer.
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Ora, a meu ver, um único, dentre os trabalhos apresentados, tem isso, e no mais puro, elevado grau. Poesia que está sozinha – parece-me – no atual momento literário brasileiro. Neste, como em qualquer outro torneio, tal obra mereceria sempre um primeiro prêmio. E tão altamente distanciada paira ela sobre as demais, que não me parece possível a concessão, a qualquer outra, de um aproximador segundo prêmio. É o livro Magma, de João Guimarães Rosa, inscrito sob o nº 8. Pura, esplêndida poesia. Descobrese aí um poeta, um verdadeiro poeta: o poeta, talvez, de que o nosso instante precisava.
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Nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade livre de vegetal em ascensão, Magma é poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos.

[…]

Concluindo: — É, pois, meu parecer que seja o 1º prêmio do Concurso de Poesia de 1936 concedido ao livro Magma, de João Guimarães Rosa; e que não seja a ninguém, neste torneio, conferido o 2º prêmio, tão distanciados estão do primeiro os demais concorrentes.

Premiado com o 1º lugar no concurso, Magma representa uma empreitada única na carreira de João Guimarães Rosa. Muito se diz que o autor simplesmente renegou o livro, mas vejo mais como uma passagem definitiva de um gênero para outro. Dez anos depois de conceber os poemas de Magma, Rosa trouxe ao mundo o seu Sagarana (1946), e a partir de então dedicou-se exclusivamente aos contos, novelas (e a um romance), mudando, inclusive, a sua forma de ver os seus próprios versos e os de outros escritores. Para esclarecer melhor essa percepção, reproduzirei abaixo um trecho da entrevista que o autor deu ao jornalista Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos realizado Gênova, em janeiro de 1965:

LORENZ: Isto quer dizer que começou sua carreira como lírico?

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GUIMARÃES ROSA: Não, tão mal não foi. Entretanto, escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado. Mas logo, e eu quase diria que por sorte, minha carreira profissional co­meçou a ocupar meu tempo. Viajei pelo mundo, conheci muita coisa, aprendi idiomas, recebi tudo isso em mim; mas de escrever simples­mente não me ocupava mais. Assim se passaram quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exer­cícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes. Principalmente, descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retornei à “saga”, à lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas. Então comecei a escrever Sagarana. Nesse meio tempo haviam transcorrido dez anos, como já lhe disse; e desde então não me interesso pelas minhas poesias, e raramente pelas dos outros. Naturalmente digo isso, porque é um dado biográfico, pois não aconteceu que, um belo dia, eu simplesmente decidisse me tornar escritor; isto só fazem certos políticos. Não, veio por si mesmo; cresceu em mim o sentimento, a necessidade de escrever e, tempos depois, convenci-me de que era possuidor de uma receita para fazer verdadeira poesia.

Não tendo mais voltado à seara poética, Rosa “condenou” Magma a uma existência solitária, que teve ainda o “azar” de ser a primeira obra de um futuro grande escritor, ou seja, um duplo motivo para nunca ter tido real atenção em termos de publicação. Foi apenas em 1997 (61 anos depois de ser escrito) que o livro foi enfim publicado, pela editora Nova Fronteira. É praticamente impossível ler esta obra e não fazer relações literárias com o estilo das tramas futuras do autor. A ligação com a terra, a sensação de pertencimento do homem a um determinado espaço e/ou realidade (o livro abre com um poema chamado Águas da Serra e fecha com um poema chamado Consciência Cósmica) e a força de determinados versos intimistas possuem a capacidade de deslocar o leitor para os confins do Brasil, do Oriente Médio, da Pré-História, das lendas do folclore brasileiro ou da História indígena, num belo carrossel de tempos, lugares e possibilidades.

É por isso que gosto tanto do título. Em geologia, entende-se por magma a massa ‘pastosa’ de minerais em fusão que sai das profundezas da Terra através de uma erupção vulcânica. Essa mistura de elementos que vieram a se fundir devido a altas temperaturas (simbolicamente, a cabeça do escritor) escorre de maneira lenta, mas chamativa, através de versos nesse livro. Viajamos por entre histórias de amor, cantos de Iara e outros tipos de “cantoras mortais” das mitologias ao redor do mundo; tramas humanas de cortar o coração, como a do poema Reportagem (guardadas as especificidades da doença, me lembrei bastante da dinâmica de Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha aqui) ou narrativas épicas como as de No Araguaia, dividido em quatro partes, contando as aventuras, o modo de entender o mundo, a vida e a morte do nativo Araticum-uassu.

Magma é um fluxo em verso sobre um Brasil visto por lentes de um rústico curioso, de um contador de histórias que colocava em suas linhas os caminhos literários, as referências já bem estabelecidas na História da literatura ou cultura de vários povos. Também traz uma reflexão sobre a fragilidade do ser humano em seus sentimentos e em sua própria vida, juntamente com uma boa mostra da grandeza da natureza, da impossibilidade de dominar certas coisas e da pequenez do homem diante de questões cósmicas. Com poemas que quase nunca obedecem rimas (há muita rima interna, todavia) e que muitas vezes parecem simples demais em comparação a outros grandes da mesma obra, Magma é uma estreia literária em forma de livro (e digo isso porque Rosa já tinha publicado 4 contos em jornal, entre 1929 e 1930). O primeiro passo organizado de um dos gigantes da literatura Universal.

Magma (Brasil, 1997)
Autor: João Guimarães Rosa
Ilustrador: Poty Lazzarotto
Editora original: Nova Fronteira
150 páginas

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