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Crítica | Mandrake, o Mágico: O Cobra (1934)

por Ritter Fan
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Lee Harrison Gross, que adotou o nome do meio de seu padrasto para tornar-se Lee Falk nas artes, pode ser considerado como um dos mais importantes criadores de quadrinhos da história, sendo responsável não só por Mandrake, o Mágico, publicado pela primeira vez em 1934, como também, dois anos depois, pelo Fantasma, O Espírito que Anda, dois personagens que ele escreveu literalmente até morrer em 1999, ditando suas histórias finais da cama do hospital, mas que sobreviveram a ele e que até hoje ganham novas histórias e versões. Por vezes laureado com a alcunha de primeiro super-herói dos quadrinhos (vide quadro sobre o assunto), Mandrake ajudou a sedimentar a imagem do personagem uniformizado com super-poderes e sidekick que viaja pelo mundo lutando contra as forças do mal, muitas vezes super-vilões também uniformizados e mascarados com tanto ou mais poderes que ele, abrindo caminho para a criação de outros vários, inclusive o Superman, não muito tempo depois.

Existe uma névoa que esconde a verdade efetiva sobre as origens de Mandrake, névoa essa que não tenho a menor pretensão de levantar aqui. Ficarei contente em apenas estabelecê-la, começando pelo que parece ser fato incontestável: foi o interesse de Falk em shows de mágicos sua inspiração direta para a criação do personagem que ele mesmo desenhou bem em sua origem. A aparência física do personagem (o rosto) parece ter vindo da imagem do próprio Falk à época, mas é mais comum nos depararmos com a afirmação de que ele teria se inspirado em um mágico homônimo que tinha bigode fino e cabelo lambido e que se apresentava de fraque, cartola e uma pequena capa com forro vermelho. No entanto, apesar de ser também inconteste que esse mágico trabalhava como tal bem antes de Falk criar Mandrake e que Falk provavelmente o conhecia nem que fosse de ouvir falar, Leon Giglio (seu nome) mudou seu sobrenome para Mandrake por causa do sucesso da criação de Falk e não o contrário (a palavra mandrake, em inglês, significa mandrágora, planta que, por ter raiz bifurcada que se assemelha à figura humana, tem historicamente conexão com feitiçaria). Por outro lado, ao que tudo indica, Phil Davis, o primeiro artista a efetivamente desenhar Mandrake a partir de instruções iniciais de Falk, e que continuaria no cargo quase ininterruptamente até falecer 30 anos depois, conhecia Giglio pessoalmente, o que provavelmente reforça a tese de que o uniforme de Mandrake foi mesmo inspirado no do mágico de carne e osso. O que é verdade e o que é mentira não interessa muito no final do dia e só acrescenta à mística desse tão famoso e adorado personagem místico!

Ultrapassado esses pontos, vamos aos quadrinhos objeto da presente crítica. Mandrake, como era comum na época, começou a ganhar o mundo por intermédio de tiras diárias de jornal, sempre em preto e branco, que começaram em 11 de junho de 1934 e acabaram, pasmem, em 06 de julho de 2013 (sim, 2013!), em uma última história que nunca foi encerrada. Entre essas duas datas, o personagem ganhou uma versão radiofônica, versões televisivas e cinematográficas, animações e até mesmo um musical teatral, além de um sem-número de quadrinhos (por várias editoras) além das tiras de jornal em uma carreira que continua bem obrigado até os dias de hoje. Seu universo próprio é rico de personagens coadjuvantes como Lothar (que debutou junto com o mágico, na verdade, tecnicamente, três quadros antes dele) e a Princesa Narda (que apareceu em sua segunda história e com quem casou em 1997), mas ele já fez crossovers com os mais variados heróis, dentre eles seu “irmão mais novo” Fantasma e o herói espacial Flash Gordon.

O primeiro super-herói

Determinar o nascimento do primeiro super-herói não é tão simples quanto parece e depende das definições de cada um de nós sobre o que é um super-herói e, principalmente, da mídia que escolhermos. Ainda que a exata expressão em si tenha aparentemente surgido em 1917, é perfeitamente possível voltar para a mitologia grega e pinçar de lá os arquétipos dos super-heróis, da mesma forma que seria válido ir para a Idade Média para usar Robin Hood como esse arquétipo. Viajando mais para frente no tempo, temos o Pimpinela Escarlate em 1905 na dramaturgia e Gray Seal (1914), Zorro (1919) e O Sombra (1930) na literatura pulp.

Se quisermos delimitar a super-heróis em quadrinhos e aceitarmos um conceito alargado deles, literalmente como quadros desenhados apresentados em sequência (mas narrados ao vivo, como em uma peça teatral), talvez o primeiro super-herói tenha sido o japonês Ōgon Bat, em 1931. Mas e personagens como o argentino Patoruzú em 1928 e o americano Popeye em 1929? Será que podemos considerá-los nessa extensa e variada lista?

Seja como for, as efervescentes primeiras décadas do século passado foram pródigas no estabelecimento do conceito do super-herói como hoje o conhecemos e, dentre tantas criações mais obscuras, mas que mesmo assim resistiram ao tempo, é sem dúvida necessário lembrarmos de Mandrake, o Mágico, que reúne diversas das características mais importantes de um super-herói moderno: uniforme, super-poderes e um sidekick.

O primeiro arco narrativo foi publicado entre 11 de junho e 24 de novembro de 1934 e ganhou o simples título The Cobra ou O Cobra, nome de seu arqui-inimigo. No lugar de escrever uma história de origem, Falk não perde tempo em apresentar Mandrake já em sua forma final, com seu “uniforme” famoso e sempre acompanhado de seu fiel “criado” Lothar (que já foi chamado de “escravo negro gigante”, mas que depois foi retconado como um príncipe), um homem negro forte que fala mal inglês e veste short, pele de leopardo e um fez em uma daquelas criações estereotipadas que devemos entender como fruto de seu tempo. Os dois surgem literalmente do nada, em uma entrada triunfal, em meio ao encontro do Inspetor Sheldon, do serviço secreto americano, acompanhado de seu assistente Tommy Lord e sua filha Bárbara com o embaixador Wandergriff para lidar com o furto de documentos que têm o potencial de levar o mundo à guerra.

Não demora e Mandrake faz com que o mordomo do embaixador confesse ter sido o ladrão por ordens do Cobra e ele, o Inspetor e sua entourage partem para Tejei, país árabe fictício, para dar cabo do vilão. Como a narrativa era publicada em breves tiras ao longo de uma enorme quantidade de dias, a estrutura seguida por Falk é, inevitavelmente, a de “obstáculo do dia”, fazendo com que os heróis lidem com uma miríade de ameaças variadas até que inevitavelmente derrotem o vilão ao final. Com isso, há uma enorme repetição temática, com as ameaças sendo invariavelmente capangas do Cobra tentando matar Mandrake, sequestrar Bárbara (que só está lá para ser a dama em perigo, já que não faz o menor sentido um inspetor do serviço secreto levar sua filha para uma investigação perigosa) ou enganar Tommy Lord. Da mesma maneira, há algumas contradições e linhas narrativas que são introduzidas e nunca desenvolvidas ou resolvidas em um piscar de olhos, algo que também faz parte do jogo em histórias publicadas originalmente dessa maneira.

O próprio Mandrake de mágico não tem nada na verdade. Mas deixe-me esclarecer. Nesse seu começo, ele não é “só” mágico, mas sim um mago das artes místicas tão ou mais poderoso do que seus colegas que seriam criados no futuro como o Senhor Destino ou o Doutor Estranho. Com uma facilidade impressionante, Mandrake é capaz de tornar-se invisível, transformar qualquer coisa ou pessoa em qualquer coisa ou pessoa (ele transforma um grupo de capangas em toras de madeira!!!), conjurar mortos, ver imagens espectrais, teletransportar-se, criar as mais variadas ilusões, flutuar, destruir castelos inteiros e assim por diante. Ele literalmente faz com sua varinha o que é necessário para resolver o problema a sua frente, seja ele qual for, não demonstrando limitações ou fraquezas, com exceção de uma ao final, quando ele é confinado no castelo do Cobra que é uma espécie de repositório de magia negra, impedindo-o de usar sua magia branca (ainda que, inexplicavelmente, algumas páginas antes, ele manipule justamente magia negra). Com o tempo, seu poder foi de certa forma relativizado, para tornar suas aventuras um pouco mais desafiadoras, já que, aqui nesta primeira, ele faz de tudo e enfrenta tudo e a todos sem bagunçar um fio de cabelo sequer ou amarrotar seu fraque.

A arte de Phil Davis é econômica, com o artista limitando-se a desenhar o primeiro plano com os personagens, algo muito comum para tirar de jornal da época. Essa economia inclui as expressões faciais, que somente em casos extremos são detectáveis, notadamente pelo fato de os personagens serem desenhados “à distância”, normalmente no mínimo da cintura para cima, sem closes ou planos detalhe. Mas Davis imprime riqueza cultural ao texto de Falk – que é surpreendentemente pouco intrusivo – ainda que com uma tendência ao estereótipo.

A primeira história de Mandrake é, para todos os efeitos, um marco dos quadrinhos e merece ser conhecida por todos os amantes da Nona Arte. Exige um esforço, claro, por ser muito diferente do tipo de dinâmica que vemos hoje em dia, mas Lee Falk e Phil Davis precisam ser mais reconhecidos como dois dos vários pais dos quadrinhos de super-heróis que tanto gostamos de ler.

Mandrake, o Mágico: O Cobra (Mandrake, the Magician: The Cobra, EUA – 1934)
Roteiro: Lee Falk
Arte: Phil Davis
Editora original: King Comics (King Features Syndicate)
Data original de publicação: 11 de junho a 24 de novembro de 1934
Páginas: 50

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