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Crítica | Mank

por Ritter Fan
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Este é um negócio onde o comprador só ganha uma lembrança do que pagou. O que ele comprou ainda pertence a quem vendeu. Essa é a verdadeira magia dos filmes, e não deixe que digam o contrário.
– Meyer, Louis B.

Nada menos do que seis anos depois de Garota Exemplar, David Fincher volta à cadeira de diretor de cinema para finalmente trazer à luz obra idealizada e escrita por seu finado pai Jack Fincher entre o final dos anos 80 e meados dos anos 90 e que era para ter sido o filme seguinte a Vidas em Jogo, de 1997. Com o cineasta insistindo não só em usar fotografia em preto e branco, como técnicas de filmagem dos anos 30 e 40, incluindo arquitetura sonora e lentes da época,  a máquina de Hollywood fez de tudo para segurar sua visão que somente pode chegar à fruição com a entrada disruptiva do Netflix no restrito clube dos grandes estúdios.

E o resultado é simplesmente sensacional, uma experiência imersiva como poucas que nos transporta à chamada Era de Ouro de Hollywood sob a visão sagaz, ácida e extremamente crítica do roteirista alcoólatra Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) durante seu processo de criação do roteiro de Cidadão Kane reconhecido quase que unanimemente como um dos melhores filmes da História do Cinema. E que fique bem claro para que as expectativas não sejam direcionadas ao que o filme não é: Mank é menos sobre a famosa questão dos créditos sobre o oscarizado roteiro do filme de Orson Welles do que sobre uma abordagem desglamourizada das entranhas da Hollywood de outrora e do poder da imagem para informação e desinformação, em uma narrativa que paraleliza a política de hoje em dia.

Ainda no terço inicial, Mankiewicz diz, em resposta às críticas do produtor John Houseman (Sam Troughton) que não se pode capturar a vida de um homem em duas horas, apenas deixar uma impressão. E é exatamente isso que Fincher faz em suas duas horas com uma precisão impressionante e sem deixar de fazer de seu Mank uma reconstrução imagética do próprio Cidadão Kane, com direito à já citada fotografia monocromática, ao uso generoso de profundidade de campo máxima, close-ups extremos, jogos de perspectiva, uso brilhante do espaço cênico e da trilha sonora e montagem não-linear, como se ele realmente estivesse encarnando Welles na cadeira de diretor, mas olhando para Mankiewicz como seu objeto de estudo e elogios.

Mas há diversas camadas a serem observadas no denso e astuto roteiro de Jack Fincher que, diria, exige certa intimidade com tudo o que ocorreu ao redor da produção de Cidadão Kane, mesmo que o texto faça esforço para indiretamente trazer à tona o conhecimento necessário sobre o descontentamento de Hearst sobre a produção e tudo o que ele fez para impedi-la. Mesmo assim, muito fica compreensivelmente de fora, mas é aí que os flashbacks para a primeira metade dos anos 30 entram com mais força, já que são eles que formam a verdadeira nata da narrativa, dividida entre este período e o final da década – o presente da fita – com Mank isolado em um rancho em Victorville para escrever o roteiro em 60 dias.

Por intermédio desses retornos ao passado do protagonista, ganhamos uma visão de sua relação com Louis B. Meyer (Arliss Howard) e Irving Thalberg (Ferdinand Kingsley) da MGM, com seu irmão Joseph L. Mankiewicz (Tom Pelphrey) que ele apresenta a Meyer e com a doce Marion Davies (Amanda Seyfried), esposa de Hearst, além do próprio William Randolph Hearst (Charles Dance), tendo como panos de fundo principalmente a Grande Depressão e a proximidade da Segunda Guerra Mundial, com a campanha política do romancista socialista Upton Sinclair (Bill Nye) para o governo da Califórnia sendo usada para servir de estopim narrativo e, claro, criativo para a escrita de Cidadão Kane. Mank é como um comentarista do status quo, vagando de situações em situações, sem poder para interferir com ações, mas usando suas palavras e sua incapacidade de ficar quieto para lidar de sua maneira com as injustiças, mesmo que elas acabem engolindo-o ao amplificar sua dependência de álcool.

Mas há mais. Se olharmos em plano geral para a história de Hearst e Sinclair sob os olhos de Mank, ela pode ser resumida ao velho duelo de Golias contra Davi que se repetiu na produção de Cidadão Kane quase que exatamente da mesma forma, só que duas vezes, a segunda desconhecida por muitos. A primeira é, claro, tudo o que Hearst fez para destruir o filme de Welles e o próprio Welles e todos no meio do caminho. A segunda é Welles sendo tratado como Golias e Mank como Davi na disputa sobre os créditos do filme, algo que reputo como o calcanhar de Aquiles do roteiro. Inicialmente, o texto de Jack Fincher era primordialmente sobre esse aspecto de bastidores e apenas com o tempo e com as conversas com seu filho é que a história ganhou contornos mais sofisticados e ambiciosos. Mas o problema é que esse detalhe permaneceu no texto final, ganhando pouquíssimo desenvolvimento e uma resolução talvez apressada que, mesmo reiterando a luta entre desiguais que é o mote do filme e também do filme dentro do filme, parece perdida, como uma nota de rodapé que, pensando em retrospecto, talvez devesse mesmo ter sido.

Por outro lado, Fincher – o David agora – acertou em cheio na escalação e seu elenco brilha em cada cena, valendo o destaque absoluto, claro, a Gary Oldman, possivelmente no melhor papel de sua vida até agora. O Mank que ele constrói é absolutamente cativante, exalando inteligência e sarcasmo na mesma proporção que percebemos sua decrepitude física e sua sede destruidora. Oldman estabelece um personagem trágico por excelência que trafega muito bem em um vasto espectro emocional, sabendo ser maior do que a vida quando necessário, mas também abrindo espaço para seus colegas, como quando contracena com Seyfried ou Pelphrey, que também estão muito bem em seus papeis. Arliss Howard com Louis B. Meyer tem vários dos melhores momentos do filme, especialmente a kubrickiana sequência em que a câmera o acompanha avançando com um Mankiewicz de cada lado e proferindo as regras de seu estúdio, somente para chegarmos ao momento em que ele pede, com voz engrolada, mas falsa até a última sílaba, que seus artistas cortem na carne para manter o estúdio de pé.

Com tanto o que falar positivamente, o problema sobre o conflito de créditos de Mank acaba não sendo muito mais do que um incômodo na reta de chegada. O longa brilhantemente resgata a história do autodestrutivo roteirista, tomando seu lado incondicionalmente, mas usando-o principalmente como veículo para caracterizar uma era e toda uma indústria, além de tensões políticas que ganham eco em nosso cotidiano quase 100 anos depois. David Fincher sai de seu longo jejum cinematográfico para adicionar mais uma grande obra à sua curtíssima filmografia, deixando-nos sedentos por intervalos menores entre seus filmes.

Mank (Idem – EUA, 04 de dezembro de 2020)
Direção: David Fincher
Roteiro: Jack Fincher
Elenco: Gary Oldman, Amanda Seyfried, Lily Collins, Arliss Howard, Tom Pelphrey, Sam Troughton, Ferdinand Kingsley, Tuppence Middleton, Tom Burke, Joseph Cross, Jamie McShane, Toby Leonard Moore, Monika Gossmann, Charles Dance, Leven Rambin, Bill Nye, Jeff Harms
Duração: 131 min.

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