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Crítica | Mar Adentro (2004)

por Matheus Carvalho
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Entre os temas mais difíceis que o cinema ou qualquer outra arte pode tentar retratar, a morte, mais especificamente a eutanásia, deve figurar entre os principais. A complexidade da questão, aliada à falta de representatividade entre grandes diretores e roteiristas faz com que sejam raras as películas que se dedicam a debater o assunto. Em 2016, a comédia romântica britânica Como Eu Era Antes de Você recebeu uma série de críticas e protestos por ter, na ótica de muitos, glamurizado a eutanásia e reduzido o debate a uma comédia leve e adolescente, que se resolve em meio a piadas, sarcasmos e uma alta dose de humor.

O espanhol Mar Adentro, ainda que anterior à comédia britânica, parece entender exatamente as críticas e se antecipar a todas elas. A história retrata a vida de Ramón Sampedro, um espanhol de meia idade que é paraplégico há mais de 20 anos e deseja, conscientemente, a morte. Ramón era marinheiro e sofreu um acidente ao mergulhar e bater a cabeça no fundo do mar. Desde então, vive numa cama na humilde residência em que mora com o pai, seu irmão José, a cunhada Manoela e o sobrinho Javier. A eutanásia na Espanha era proibida e Ramón precisa contar com a ajuda da advogada Júlia, que simpatiza com sua história, para tentar convencer a Corte espanhola a alterar a lei e atender ao seu pedido.

A direção ficou à cargo do jovem diretor chileno Alejandro Amenábar, que havia realizado apenas três longas na carreira e ganhado destaque por Presos na Escuridão (1997) e Os Outros (2001), este último com um sucesso mais globalizado e dirigindo atores consagrados, como Nicole Kidman. Sendo Amenábar um nome mais ligado a filmes de suspense, criou-se certa expectativa sobre a abordagem que utilizaria ao dirigir um drama biográfico tão complexo, principalmente porque ele também seria responsável pelo roteiro, escrito novamente ao lado do amigo Mateo Gil e inspirado no livro biográfico de Ramón, Cartas do Inferno.

No entanto, logo na primeira sequência já conseguimos captar de maneira muito clara qual seria o tom adotado na obra. Ramón está sendo guiado pela voz de sua ajudante Gené numa meditação que o leva à uma linda praia da Galícia, num dia ensolarado e sem nuvens. Gené o instiga a sentir as texturas, os aromas, a temperatura e a paz daquele momento. De repente, a meditação é interrompida por um trovão e somos trazidos de volta à realidade cinza de uma tarde chuvosa, na qual Ramón está deitado em sua cama como tem sido nos últimos 28 anos. Gené fecha a janela e vai embora, simbolizando a separação da vida de Ramón com o mundo exterior, com seus sonhos e projetos interrompidos.

É impressionante como pouco mais de um minuto dessa sequência inicial já traz um impacto para o resto do filme que nos ajuda na conexão com o personagem principal, ainda que seu rosto não tenha sido mostrado até então. A sensibilidade na direção de Amenábar se faz presente durante todos os momentos da trama, que ele introduz de maneira rápida e eficiente, sem recorrer a longas cenas de flashbacks ou a uma trilha sonora forçada e manipuladora. Pelo contrário, o uso do silêncio é muitas vezes utilizado como artifício para nos conectarmos ainda mais com a situação do protagonista e sua solidão existencial.

Em um primeiro ato direto e objetivo, somos introduzidos ao dia-a-dia de Ramón sob a ótica da advogada Júlia, que está assumindo o caso. Ela conversa com cada membro da família e extrai de cada um seus pensamentos e sentimentos em relação à ideia de Ramón de deixar de viver. Todos são desfavoráveis e se dedicam ao máximo para que ele se sinta cuidado e acolhido da melhor maneira que podem. Em sua conversa com o próprio, Júlia é pragmática ao perguntar “Por que você quer morrer?”. Através de sua resposta, o roteiro nos apresenta todos os sentimentos e filosofias de Ramón para com a vida, sua descrença em algo além da morte e sobre sua situação, a qual ele considera indigna, mas deixa claro que quer ser interpretado individualmente e não julgar que a condição de todo tetraplégico é indigna.

Enquanto Júlia está disposta a ajudar, o roteiro introduz a personagem de Rosa, uma mulher solitária e simples, que cria sozinha seus dois filhos e trabalha em dois empregos para conseguir sustentar a casa. Ela se solidariza com a história de Ramón e se torna sua amiga, tentando convencê-lo de que viver vale a pena e que ele deveria abandonar suas ideias contrárias. A partir daí o roteiro cria um paralelo das relações de Ramón com Júlia e Rosa e usa os diálogos como exposição do seu passado, dos sonhos e relacionamentos abandonados pelo acidente, todas as amarguras que ele carrega e o quão seguro está de sua decisão, sem titubear por um instante sequer.

Todo o drama é escrito de maneira muito sóbria e humana. Não existe qualquer tentativa de se romantizar a questão ou criar heróis e vilões dentro da trama. Um ponto bem claro para evidenciar a preocupação do roteiro é o pouco tempo dedicado ao debate legal sobre a eutanásia em si. As cenas de tribunal são mínimas e os termos jurídicos inexistentes. O centro da trama é realmente o sentimento de Ramón e sua relação com a vida e as pessoas à sua volta. Nesse sentido, conforme as relações evoluem, entendemos melhor os dramas de Júlia e Rosa e porque elas se conectam tanto com o protagonista. Júlia sofre de uma doença degenerativa que a coloca numa cadeira de rodas e a aterroriza quanto ao seu futuro. Ela se apega à Ramón e eles criam uma conexão forte e sensível. Já Rosa, tão machucada em relacionamentos amorosos, projeta em nele um homem ideal e que a dá forças para viver. Quando ela entende que para ele a maior demonstração de amor é ajudá-lo a morrer, ela se entrega e deixa de lutar contra a vontade dele, trazendo à história um final sensível e melancólico, mas nada romântico ou glamourizado.

Toda essa sensibilidade é positivamente ressaltada pelas ótimas atuações e pelo design de produção da obra. A preocupação de Amenábar em balancear a quantidade de tomadas internas e externas dá um alívio ao espectador e evita uma sensação claustrofóbica de acompanhar toda a história dentro do quarto onde Ramón vive. A composição de personagem por parte do ator Javier Bardem também merece destaque, desde as expressões faciais, a postura enrijecida, a respiração e a fala acelerada trazem verdade ao personagem, que através da maquiagem indicada ao Oscar daquele ano o transforma completamente.

Mar Adentro consegue emocionar e ao mesmo tempo trazer reflexões pertinentes, duas características que infelizmente nem sempre andam juntas. O filme é mais um ótimo trabalho de Amenábar e do cinema espanhol, que merecidamente levou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de volta à Espanha, que havia vencido pela última vez com Tudo Sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar.   

Mar Adentro (The Sea Inside) – Espanha, 2004
Direção: Alejandro Amenábar
Roteiro: Alejandro Amenábar, Mateo Gil
Elenco: Javier Bardem, Belén Rueda, Lola Dueñas, Mabel Rivera, Celso Bugallo, Clara Segura, Joan Dalmau, Alberto Jiménez, Tamar Novas, Francesc Garrido
Duração: 126 min.

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