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Crítica | Mar da Tranquilidade, de Emily St. John Mandel

Tempos pandêmicos.

por Ritter Fan
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  • Nãospoilers.

Meu primeiro e, até a leitura da obra que agora comento, único contato com a escritora canadense Emily St. John Mandel foi indireto, por intermédio da excelente minissérie Estação Onze, capitaneada por Patrick Sommerville. Minha intenção era ler o livro homônimo, originalmente publicado em 2014 e seu primeiro grande sucesso, mas, ao descobrir que ela estava para lançar uma nova obra, decidi aguardar a esperada data. Com Mar da Tranqulidade (minha tradução direta do título original Sea of Tranquility) em mãos, comecei a leitura e acabei em apenas um dia, o que diz muito da qualidade da obra, para o mal ou para o bem.

O que se destaca imediatamente no romance é que a autora tem um estilo delicioso de escrever, o que torna a leitura muito fácil e prazerosa. Ela é econômica em descrições, focando muito mais em sentimentos momentâneos que marcam seus personagens, do que intrincados destrinchamentos de motivações e elucubrações mentais. É, para todos os efeitos, um livro de momento, de decisões de estalo, de vidas sendo vividas em minutos, dias, no máximo semanas. Essa combinação de fatores é o que, para mim, fez de Mar da Tranquilidade o que os americanos chamam de page turner, ou seja, um livro que é impossível parar de ler. Mas não é só isso que torna a obra algo que facilmente pode ser engolida em uma sentada.

Essa momentaneidade do texto de Mandel é refletida em sua curiosa estrutura em oito partes, algumas repletas de capítulos, outras sem nenhum, e todas pulando no tempo, com o começo em 1912 e o momento futuro mais distante sendo o comecinho do século XXV, o que, claro, mantém constantemente atiçada a curiosidade do leitor e lembra um pouco a estrutura de Atlas de Nuvens (Cloud Atlas), de David Mitchell. Além disso, todas partes e capítulos são muito curtos, alguns de apenas um ou dois parágrafos, o que cria aquela ansiedade típica de leitor de ler “só mais um pouquinho”.

Estou sendo propositalmente críptico em termos de sinopse, porque considero muito mais interessante entrar na experiência deste livro sem conhecimento prévio de nada, a não ser dos pulos temporais mencionados acima que já ficam evidentes na divisão de capítulos que antecede o começo. Mas, só para não deixar ninguém boiando completamente, Mar da Tranquilidade é decididamente uma obra de ficção científica na categoria soft sci-fi, ou seja, sem aquelas explicações detalhadas de como tudo funciona, que aborda diversos personagens em momentos temporais diferentes que têm em comum entre si uma estranha anomalia que já é abordada logo na primeira parte, que se passa no começo do século XX. Existe um “segredo”, claro, mas que o leitor de obras do gênero acertará logo de início, pois a autora não tem a intenção de escondê-lo na verdade, estando muito mais preocupada em lidar com a humanidade diante da extinção.

Sim, esse é o segundo aspecto relevante da obra, já que ela foi escrita durante a Pandemia de 2020 (já podemos chamá-la assim?) e tem o tema pandemia servindo de pano de fundo para a história. Confesso que essa é minha primeira grande reticência com o romance, já que a costura da pandemia – ou de pandemias, no plural – na infraestrutura narrativa não me convenceu e me pareceu forçada, como algo panfletário para vender mais livros. Notem que Estação Onze – julgando pela série, obviamente – também usa uma pandemia arrasadora como pano de fundo e gatilho narrativo, mas, primeiro, o livro que deu base à obra televisiva é bem anterior à pandemia atual e, segundo, seu uso me parece, ironicamente, muito mais legítimo do que o que ela faz em Mar da Tranquilidade. Digo isso, pois os eventos da obra não dependem exatamente de um evento desse porte para acontecerem, pelo que tudo fica muito na superfície, como palavras estrategicamente colocadas no texto para chamar atenção do leitor no momento em que o livro foi publicado.

É a superfície – ou a manutenção da narrativa na superfície, para ser mais exato – meu segundo ponto de contenda com o texto de Mandel e o mais sério. Apesar de eu ter mencionado a economia da obra da autora como qualidade, essa rotulação não é absoluta. Eu aprecio a forma como ela manipula as palavras, não escrevendo mais do que o estritamente necessário, mas isso não é razão para fazer de Mar da Tranquilidade algo que eu talvez grosseiramente classificasse como um “esboço de romance” ou um apanhado de ideias inseridas de maneira mais ou menos concatenada para formar um livro vendável. Os mundos que ela cria – no passado e no presente – são rasos e, mesmo com a diferença de cinco séculos entre eles, quase que completamente fungíveis. Seus personagens também são assim. Não existe arco narrativo para nenhum deles a não ser o misterioso Gaspery-Jacques Roberts – que não, não vou dizer quem é ou o que faz – e mesmo assim de maneira muito superficial e simplista.

E a manutenção da história no “raso da piscina” para simplificá-la e sem arriscar-se, Mandel acaba que não consegue dar voz genuína a seus personagens através dos séculos. Mesmo mudando de terceira pessoa onisciente na maior parte do livro para primeira pessoa subjetiva no que se refere a Gaspery, o que fica é a voz de Emily St. John Mandel, se é que me entendem. O personagem de 1912, com exceção de uma ou outra palavra estrategicamente inserida aqui e ali, fala exatamente igual ao personagem de 2401, a diferença ficando resumida ao capítulo que claramente indica o momento temporal e às descrições da tecnologia (ou falta dela). Não que Mandel não crie personagens diferentes, pois ela sem dúvida cria, mas meu ponto é que todos poderiam muito facilmente ser contemporâneos mesmo com os muitos e muitos anos que os separam e isso incomoda um pouco, dando a impressão ruim de que a autora quis correr com sua obra para ainda lançá-la durante a atual pandemia.

No entanto, nada de negativo que eu disse muda minha conclusão inicial de que Mar da Tranquilidade é uma leitura gostosa, daquelas que só dá para parar quando ela acaba. Emily St. John Mandel definitivamente tem o dom da palavra e ela sabe lidar bem com os tropos da ficção científica, mas, sua história urgia por mais do que um simulacro de complexidade e de pensamentos filosóficos. Do jeito que ficou, o livro ainda consegue ser interessante, mas sem muito peso. Se meu interesse por Estação Onze esfriou? Confesso que um pouco, mas não o suficiente para retirá-lo de minha lista; talvez apenas fazê-lo andar algumas casas para trás…

Mar da Tranquilidade (Sea of Tranquility, EUA/Canadá – 2022)
Autora: Emily St. John Mandel
Editora original: Knopf
Data original de publicação: 05 de abril de 2022
Páginas: 272

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