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Crítica | Mar Morto, de Jorge Amado

Um romance em prosa poética que destaca as belezas culturais afro-brasileiras.

por Leonardo Campos
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Um dos mais belos momentos da carreira literária de Jorge Amado, Mar Morto é um encantador romance estruturado numa linha de associação entre prosa e poesia, fascinante de acompanhar, texto onde o escritor dispõe para o leitor os costumeiros painéis de numerosos personagens, situados em questões tangenciais de seus respectivos contextos históricos. Publicado em 1937 e contemplado diante da panorâmica presença do autor em nosso sistema literário ao longo do século XX, podemos perceber que este é um dos pontos de partida de Jorge Amado em sua missão comprometida de radiografar a história de nosso país, traçar os elementos transformadores do estabelecimento da modernidade e escrever as memórias de nosso povo. Filiado, conforme os aparatos da crítica literária, ao romance de 30, aqui temos Guma como herói, um homem que segundo as descrições do narrador, é um mulato de cabelos longos e morenos, de forte aspecto sedutor, com destino traçado desde sua juventude: morrer no mar.

Ele é filho de Frederico, um marinheiro que os deixa com os tios e segue sem olhar para trás e assumir a sua paternidade cabalmente. Criado por Francisco, um aventureiro, juntamente com sua esposa prostituta, o protagonista experimenta todas as mazelas sociais que tangenciam a sua trajetória: fome, dissociação com educação formal, falta de perspectiva, dentre outras circunstâncias. Marcado pela rejeição da mãe em sua formação, Guma reflete a sua carência nesta seara nos relacionamentos com as mulheres que atravessam a sua vida. Em Mar Morto, acompanhamos o seu nascimento e morte, um ciclo que se fecha de acordo com as predestinações estabelecidas ao passo que cada capítulo avança, numa história que deflagra o perfil social, físico e psicológico do herói, dando também espaço para narrar às existências de outros personagens com presenças igualmente marcantes. Iemanjá, simbólica em sua passagem como alegoria da construção de nossa identidade, por meio da herança africana, conecta diversos pontos do enredo e permite o estabelecimento de uma atmosfera mística interessante.

Em sua passagem relativamente curta, haja vista a morte ainda jovem, Guma se apaixona e vive um tórrido amor com Lívia, se relaciona com Esmeralda, uma insistente esposa de seu melhor amigo Rufino, criando uma cisão trágica na amizade de ambos. Em sua história, narrada por páginas embaladas pelos movimentos da prosa poetizada de Jorge Amado, também temos relatos sobre Mestre Manuel, sua esposa Maria Clara, os humorados casos de malandragem do cotidiano de pescadores, a relação do protagonista com o contrabando de seda para os árabes em momentos de incertezas além da saga empoderada de Rosa Palmeirão, uma prostituta conhecida por sua postura firme diante da sociedade machista, a lutar constantemente com homens em prol de digladiar com as demandas do patriarcado opressor, ainda mais vigente na época que em nossa atualidade também tenebrosa neste aspecto. Consciente de seu destino, Guma passa pelas vidas destas pessoas e deixa relatos de bravuras, devotando-se a Iemanjá em seu desfecho, morrendo docente no mar, como versado por Dorival Caymmi.

Em seu saveiro intitulado “Valente”, Guma tem as suas peripécias descritas pelo hábil narrador que também versa sobre a batalha do médico Rodrigo e da professora Dulce em prol do posicionamento da população, literalmente afogada no marasmo e desacredita no potencial da educação como elemento modificador de suas existências. O romance também analisa a condição das viúvas dos trabalhadores pesqueiros, homens que saem para o labor, mas nem sempre retornam, bem como as fronteiras que demarcam as divisas sociais entre burgueses e suas posses, dissonantes dos meninos de rua e dos que vivem em condições precárias. Transformado por Aguinaldo Silva numa versão para telenovela em Porto dos Milagres, o romance Mar Morto é uma narrativa potencialmente cinematográfica, mas ainda não traduzida devidamente para este suporte, algo que nas mãos certas, provavelmente seria um delírio visual para os amantes do universo literário de Jorge Amado.

Mar Morto (Brasil) — 1936
Autor: Jorge Amado
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 288

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