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Crítica | Marcas da Violência

por Leonardo Campos
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David Cronenberg, o cineasta das mutações. Os seus personagens se encontram numa constante postura camaleônica diante de suas identidades, mergulhados em cenários opressivos, hostis, em suma, demasiadamente desafiadores. Lançado em 2005, Marcas da Violência é uma dessas expressões mutantes, num exercício de concepção e análise dos próprios personagens que tornam o filme um de seus melhores exemplares no que concerne um estudo da “alma humana”. Ao revisitar este apurado exercício dramático e estético, lembrei-me das considerações sobre o cineasta no livro Violência e Cinema, de Luís Nogueira, publicação que em determinado ponto, delineia que Cronenberg é o realizador das debilidades, das máscaras e perturbações carnais, além de ser um exímio analista e retratista das solidões que acometem a volatilidade dos comportamentos humanos, envoltos em fantasmas e fantasias que se perdem e se dilaceram.

Basta observar Marcas da Violência de maneira geral para a cabal confirmação destas colocações. O que é a vida do protagonista Tom Stall? Ele é um ser mascarado, numa roupagem identitária nova que não reflete os fantasmas do passado que ele pensava não mais pairar em sua nova existência. Não é fisicamente explícito como nos desdobramentos da mutação em A Mosca, mas tão alegórico quanto. Guiado pelo roteiro de John Olson, texto inspirado na HQ escrita por John Wagner e ilustrada por Vince Locke, o filme dirigido por Cronenberg segue a linha de separação e encontro das duas existências do protagonista, entrelaçadas em alguns pontos, dissociadas noutros, num esquema de portabilidade que revela as dimensões sociais e psicológicas da complexa formação da identidade humana.

No filme, Tom Stall (Viggo Mortensen) é o pacato dono de um café numa cidade interiorana dos Estados Unidos. Marido atencioso da advogada Edie (Maria Belo), ele é pai de uma pequena garota e um adolescente, Jack (Asthon Holmes), jovem que sofre bullying constantemente na escola. Certo dia, dois facínoras/criminosos/monstros humanos adentram em seu estabelecimento e anunciam o ato covarde de manter reféns e fazer estragos. Tom, numa postura inacreditável, parece se transformar num lutador profissional e mestre das artes marciais. Ele atua contra a dupla que na abertura, já tinha demonstrado nenhum grau de piedade ao ceifar os donos de um posto de gasolina na estrada, inclusive uma criança, morta em off. Assim, Tom destrói a vida dos criminosos e salva a noite e a vida de seus funcionários e clientes.

Está, então, estabelecida a uma nova ordem na cidade, com Stall na representação do posto de herói. Logo, emissoras de TV aparecem para entrevista-lo. A aparição, por sua vez, além de nociva no que diz respeito à invasão da privacidade do “herói” e de sua família, expõe midiaticamente a imagem do personagem que parece refletir muito mais que o seu atual papel como pai de família e gestor de uma lanchonete. Numa abordagem da exposição anterior ao advento da massificação das redes sociais, a vida de Tom é esmiuçada e um desconforto se revela na chegada de Carl Fogarty (Ed Harris) e seus capangas, misteriosa figura que diz saber que Tom Stall na verdade é uma representação. Por detrás da máscara deste homem há o adormecido Joey Cusack. Eles perseguem, perturbam, ameaçam e certo dia, pegam o filho de Tom como refém para fazê-lo se revelar de uma vez por todas.

A passagem rende mais uma súbita mudança no personagem, que ao se sentir ameaçado, age de maneira violenta e também ceifa a vida dos algozes que pretendiam infernizar a sua vida. Agora, Tom Stall precisa resolver outros problemas que se desdobram desta mudança de cenário em sua vida. A sua missão é apagar de vez algumas brechas da trajetória antiga, o que inclui reencontrar o seu irmão Ritchie (William Hurt), mafioso da Filadélfia que deseja acertar as contas em aberto há décadas. Nisso, mesmo que relute para se revelar, Stall precisa contar a verdade para a esposa, somando assim, mais problemas em seu cotidiano, além do filho que parece carregar consigo uma partícula desse adormecido Joey Cusack ao reagir contra os colegas que tiram a sua paz durante tantos meses na escola.

Ao tentar dialogar com o jovem, o pai percebe que perdeu o respeito. Se você pode matar e agir, por qual motivo eu não posso? Esse é o questionamento do adolescente que manda o seu algoz para o hospital depois de tanto tempo de humilhação e desconforto nos corredores da instituição de ensino que não dá conta destas demandas que tal como sabemos, se desdobram em furiosas tragédias, tais como Columbine e outros tortuosos momentos de violência e dor na vida das vítimas e algozes de situações semelhantes. A esposa, que antes vivia na mesma fantasia do marido, ao se vestir de líder de torcida para uma noite de sexo relaxante, agora trafega por muitas dúvidas, juntamente com a sensação de ameaça que paira no ar não apenas para Stall/Cusack, mas para os membros de sua família. Uma cena de sexo posterior aos momentos de revelação mostra, de maneira impressionante, a faceta escondida de Stall, um homem duplo.

Interessante observar que Marcas da Violência dialoga bem com algumas considerações de Modernidade e Identidade, de Anthony Giddens, outra leitura não muito longínqua, mas que se revelou enquanto revisitava o filme que, ao longo de seus 96 minutos, nos demonstra a sustentação de uma narrativa por um ser humano que acaba sendo afetado numa trajetória que reconstrói o seu corpo e o seu eu, isto é, o físico e o psicológico, em ilações com a seara comportamental. Se tivesse escrito as suas considerações teóricas com o filme de Cronenberg como objeto de estudo, seria bem provável que Giddens se perguntasse: Joey é a larva de Tom? Ao menos, foi o que me questionei a cada instante posterior ao processo de mutação de Stall, ou talvez mais adequado, seu retorno ao estágio anterior, afinal, Stall é a evolução de Joey, não é mesmo? São pontos que não se fecham numa totalidade, em aberto para que possamos nos questionar constantemente e permitir que o filme seja exposto em seus amplos significados.

Ademais, para que a trajetória funcione bem, torna-se relevante que o exercício estético seja envolvente. Cronenberg consegue uma equipe que assume as suas funções e fornecem ao filme uma estrutura firme. A música pomposa de Howard Shore é eficiente em sua grandeza, seja nos momentos de adensamento dramático, seja na exposição das tensões de Tom Stall em transformação. O design de som é um aliado da maquiagem, setores assinados por Wayne Griffin e Stephan Dupuis, respectivamente, importantes para a sensação de incômodo quando os corpos dos envolvidos na trama são dilacerados por golpes expostos visualmente e sentidos sonoramente, exposição que ganha a sofisticada direção de fotografia de Peter Suschitzky, profissional que capta os personagens e ambientes do design de produção de Carol Spier com um toque além das demandas industriais, isto é, com ângulos mais ousados e criativos, algo que coaduna com o selo de autenticação mais autoral de David Cronenberg, um cineasta ímpar.

Marcas da Violência (A History of Violence) — EUA/ Alemanha/ Canadá, 2005
Direção: 
David Cronenberg
Roteiro: Josh Olson (baseado na graphic novel de John Wagner, Vince Locke)
Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, William Hurt, Ashton Holmes, Peter MacNeill, Stephen McHattie
Duração: 96 min.

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