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Crítica | Mare of Easttown

por Ritter Fan
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  • Nãospoilers.

A melhor maneira de começar a presente crítica é afirmar, sem medo de errar, que Mare of Easttown precisa ser elogiada no mínimo – ênfase em “no mínimo” – por conter o melhor trabalho dramático da carreira de Kate Winslet e, porque não, uma das melhores performances por uma atriz na televisão recente, e por ser facilmente a melhor série de 2021 até o momento e uma das melhores dos últimos anos, entrando facilmente em um grupo seleto de obras que são desconfortáveis, difíceis, duras e arrasadoras, mas que valem cada minuto de tempo dedicado a elas. Exagerado? Superlativo? Olha, muito ao contrário, tenho a mais absoluta certeza de que o que escrevi é até tímido e não faz jus ao que é a série é.

E o que faz Mare of Easttown ser o que é não são os casos policiais investigados pela detetive Marianne “Mare” Sheehan (Winslet), na cidadezinha de Easttown, próxima da Pensilvânia, Filadélfia, ou as sequências de ação e reviravoltas que resultam desse trabalho. O que realmente está no coração da série são seus personagens, todos eles umbilicalmente interligados seja por laços familiares, profissionais ou por amizade, cada um deles com problemas humanos, relacionáveis, que, guardadas as devidas proporções, estão ao nosso redor ou dentro de nossas próprias casas no cotidiano. Aliás, é justamente por ser um excelente reflexo da vida como ela é – e não apenas da vida como ela é em uma cidadezinha da costa leste americana – que a criação de Brad Ingelsby, por incrível que pareça um produtor e roteirista de carreira ainda acanhada, incomoda e, por consequência, se auto sabota no bom sentido da expressão, ou seja, tornando realmente doloroso acompanhar a jornada de Mare.

Só para se ter uma ideia, quando o primeiro episódio começa, já somos jogados em uma situação em que não só a protagonista se sente culpada por não conseguir solucionar o desaparecimento há mais de um ano de uma jovem, filha de uma de suas amigas, como ela própria ainda não conseguiu processar a morte extemporânea de seu filho e isso sem contar com seu ex-marido que mora com a atual noiva na casa atrás e com o retorno de sua nora querendo a guarda de seu netinho (sim, Mare é avó). E tudo isso está posto apesar do caso catalisador da série, o assassinato de uma outra jovem mulher, encontrada nua nas pedras de um riacho, com um tiro na cabeça.

É importante que o espectador tenha em mente que essa é uma série para ser contemplada por sua jornada, não pelo seu fim, para que o micro e não o macro seja sorvido, para que a emoção venha de pequenas explosões sentimentais como a que Helen (Jean Smart, absolutamente incrível para variar), mãe de Mare, demonstra em apenas alguns breves segundos quando conversa com a filha sobre culpa e sobre perdão, lá pelo último episódio, em uma cena prosaica e completamente despretensiosa. Sim, há excelentes sequências de ação, como a que ocorre no inesquecível quinto episódio (Illusions), mas mesmo elas são breves, realistas e de certa forma anticlimáticas como, por exemplo, é uma marca de The Wire, obra de mesmo calibre, o que muito claramente indica que nosso foco precisa ser no desenvolvimento dos personagens, especialmente Mare, claro.

Quando tudo acaba, quando os casos são solucionados, estamos exaustos como a protagonista. Exaustos e, mais ainda, frustrados por todas as circunstâncias ao redor deles, quase que com aquela sensação de que não, não valeu a pena esse esforço todo de uma investigação para chegar a esse resultado. Mare foge de encarar a dor pela perda do filho focando em seu trabalho de maneira obsessiva, a ponto de sair para jantar com seu parceiro Colin Zabel (Evan Peters, outro que está impressionante no papel a ponto de eu ter demorado a conectá-lo ao Mercúrio da franquia X-Men) somente para extrair dele as informações que quer, mas o resultado que ela alcança com seu trabalho incansável é só mais culpa, mais fardos para ela carregar por sobre seus ombros arqueados em uma situação sufocante e kafkiana que é agoniante para a personagem na mesma medida que é para nós, espectadores.

E essa agonia lancinante, inescapável, é trabalhada visualmente desde o primeiro quadro do primeiro episódio. Easttown é lugar nenhum e todos os lugares; o inferno de onde queremos fugir, ao mesmo tempo que é o paraíso que não queremos largar por ser o lugar onde nascemos e fincamos raízes. Como um labirinto sem saída, a aparência calma do local é rasgada violentamente pelo antigo desaparecimento, ainda muito presente por outdoors e cartazes por todo lugar e pelo recente assassinato, verdadeiras chagas que deixam a população inquieta e com os olhares virados para a protagonista e sua percebida desídia, ainda que seja justamente o contrário, na realidade. A fotografia lembra muito a de Os Suspeitos ou, mais recentemente – e também da HBO – I Know This Much Is True, com uma monocromia dominante, com paleta de cores não saindo muito de tons de marrom de forma a manter a opressão, mas, aqui, sem exatamente criar aquela desesperança infinita, algo que o comando de Craig Zobel, que dirige todos os episódios, deixa claro com uma decupagem que alterna o horror com o amor com enorme facilidade. Há uma luz no fim do túnel em termos psicológicos para todos ali, algo que podemos ver delineado lá na frente, bem distante, o que cria uma dicotomia interessante e que é explorada no final que, tenho para mim, é o ponto mais frágil da história, ainda que não suficiente para apagar o impacto de tudo o que veio antes.

A própria Mare é uma manifestação dessa cidadezinha. Percebe-se uma linda mulher escondia por trás de anos de simplesmente ser uma mulher comum, dedicada à sua profissão, sofrendo por acontecimentos dentro e fora de sua família e claramente incapaz de manifestar seus sentimentos para além de olhares distantes que talvez esperem algo diferente de cada segundo da vida. Sobre a aparência “feia” de Winslet, que propositalmente deixei para comentar apenas ao final, tenho que fazer a pergunta: por que só dizemos isso de personagens femininas, hein? Por que o policial ou detetive do sexo masculino pode ser todo esculhambado e nós aceitamos e até esperamos isso, como o Perry Mason de Matthew Rhys, na série homônima, somente para usar um exemplo recente? As perguntas são retóricas, claro, pois as respostas estão nos narizes de todos, sendo desnecessário o aprofundamento.

E esse “enfeiamento” é um ato que exige coragem especialmente no mundo de hoje em que a imagem é tudo. Kate Winslet passou por um fenomenal processo transformativo, sem, porém, que sua personagem, na história, tenha completa autoconsciência de seu desleixo, de sua mais completa humanidade. E por uma razão muito simples: Mare é uma mulher normal, oras. Afinal, a não ser que dependamos, para viver, de nossas imagens, o padrão é o de Mare – ou da Sarah Linden, de Mireille Enos, em The Killing – e não de modelos desfilando com distintivos e armas em punho, sempre bem penteadas e maquiadas. O padrão, especialmente de uma detetive que pode ter que sair de casa imediatamente, no meio da madrugada, para investigar um caso, é o de aparecer desgrenhada, com rosto lavado e com roupas práticas, repetidas e não fazendo desfile de moda. Mare, cujo apelido inclusive significa “égua”, em uma escolha para sublinhar essa rusticidade da personagem, é o que deveríamos naturalmente entender como uma personagem verossímil, sem esperar corpos esculturais em vestidos colados ou pseudo-duronas que magicamente resolvem o caso na base da pancadaria. Durona é Mare e outras como ela. O resto é conversa.

Mare of Easttown é mais um grande acerto da HBO, uma incrível criação de Ingelsby e um tour de force de um elenco sem par liderado por Kate Winslet em uma história pessoal, forte e, sim, desagradável, mas que consegue criar tensão com a mesma facilidade que emociona, sempre, porém, com muita serenidade e beneficiando os personagens e jamais a ação. Sem dúvida alguma, um verdadeiro triunfo televisivo capaz de nos fisgar, esmurrar e nos deixar destruídos ao final, mas não sem um sorriso de satisfação no rosto.

Obs: Apesar de pronunciamentos recentes terem dado a entender que há a possibilidade de uma segunda temporada (mas, que fique claro, essa história aqui é totalmente fechada), mesmo considerando que a série vem sendo classificada como limitada ou minissérie, optei por não mencionar temporada no título como minha completamente inútil manifestação silenciosa para que a HBO pare por aí mesmo e não continue e potencialmente estrague o que já está perfeito como fez com Big Little Lies.

Mare of Easttown (EUA, 18 de abril a 30 de maio de 2021)
Criação: Brad Ingelsby
Direção: Craig Zobel
Roteiro: Brad Ingelsby
Elenco: Kate Winslet, Julianne Nicholson, Jean Smart, Angourie Rice, David Denman, Neal Huff, Guy Pearce, Cailee Spaeny, John Douglas Thompson, Joe Tippett, Evan Peters, Sosie Bacon, James McArdle, Kate Arrington, Ruby Cruz, Eisa Davis, Sasha Frolova, Connie Giordano, Enid Graham, Deborah Hedwall, Dominique Johnson, Caitlin Houlahan
Duração: 420 min. aprox. (sete episódios)

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