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Crítica | Marshall

por Ritter Fan
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Quando se fala no movimento dos direitos civis dos afro-americanos, o nome que imediatamente vem à mente é o de Martin Luther King Jr. e não sem razão, claro. Malcolm X, Rosa Parks e JFK são outros que também em seguida pulam para nossas lembranças, cada um deles já tendo sindo brindado com documentários e cinebiografias das mais variadas formas contando detalhes de suas vidas e de sua influência para o movimento.

Já era hora, então, que um dos nomes raramente citados, mas que mais conseguiu vitórias expressivas que sedimentaram a igualdade jurídica entre negros e brancos, ganhasse uma versão cinematográfica. Trata-se de Thurgood Marshall, advogado ativista da NAACP (em tradução livre para o português, Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor) e que se tornaria o primeiro negro ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos, cargo que assumiu em 1967, deixando-o em 1991, em razão de problemas de saúde.

Poucos sabem disso, mas Marshall, ao longo de sua carreira que o levaria ao cargo máximo do Poder Judiciário americano, conseguiu levar 32 casos até a Suprema Corte que um dia comporia, número por si só impressionante se considerarmos os requisitos técnicos de acesso a este órgão e que fica absolutamente inacreditável se constatarmos que, destes 32, ele obteve nada menos do que 29 vitórias, sempre em causas relacionadas à igualdade de tratamento em razão de raça. Foi substancialmente por causa de Marshall que, por exemplo, as universidades americanas foram obrigadas a integrar negros ao seu corpo discente, os partidos políticos foram impedidos de criar “primárias brancas” (por mais que os Republicamos sejam hoje demonizados, foram os Democratas que instituíram isso e foram derrotados) e as cláusulas segregacionistas em contratos de aquisição de imóveis foram consideradas ilegais. O movimento dos direitos civis, arrisco dizer, não teria metade de seu impacto não fossem as sucessivas e heroicas vitórias de Marshall toda vez que enfrentava causas impossíveis em tribunais de estados segregacionistas e nos demais que se diziam não segregacionistas.

Diante de uma carreira desse naipe, portanto, é curioso que o roteiro da dupla de pai e filho Michael (advogado) e Jacob (roteirista) Koskoff tenha escolhido um caso “menor” no histórico de Marsall para focar sua narrativa. No entanto, logo no começo da obra, o espectador percebe o porquê: diferente dos demais casos do advogado, neste ele foi proibido de falar no tribunal pelo Juiz, o que obrigou Marshall a colocar, como advogado principal, o judeu Sam Friedman, adicionando um elemento dramático extra que é explorado pelo roteiro, considerando que o filme se passa em 1940, na eclosão da Segunda Guerra.

Marshall, vivido por Chadwick Boseman, é convocado pelo NAACP a defender Joseph Spell (Sterling K. Brown), negro acusado de estuprar e de tentar matar Eleanor Strubing (Kate Hudson), mulher branca rica para quem trabalhava, em Bridgeport, Connecticut. A localização geográfica é outro fator importante na narrativa, pois Connecticut é um dos estados do norte dos EUA (entre Massachusetts e Nova York), onde o imaginário popular nos faz afirmar que “não havia racismo”, algo imediatamente desmistificado pela forma como o caso nos é apresentado. Josh Gad vive Friedman, advogado especializado em causas securitárias e que é contratado inicialmente apenas para fazer com que Marshall – que não atua em Connnecticut – seja aceito na causa, mas que, depois, abraça a defesa sob a tutela dura e certeira do colega.

Marshall – o longa – é, inescapavelmente, um filme de tribunal. E, dentro dessa classificação, é impossível não lembrarmos do clássico O Sol É Para Todos, em que o heroico Atticus Finch (Gregory Peck) defende um caso substancialmente parecido com o da fita sob análise. De certa forma, porém, Marshall é um filme bem mais “duro”, talvez mais seco que se fia muito fortemente no caso em questão para fazer com que a história realmente funcione. E ela funciona, não se enganem, mas a obra tem um verniz burocrático padrão que parece dizer com letras garrafais que o que veremos a seguir não é nada diferente do que uma amálgama de tudo o que já vimos antes em termos cinematográficos. É uma receita antiga para contar uma história ainda inédita no cinema que acaba dando conforto ao espectador, que já sabe exatamente o que provará, digamos assim.

Reginald Hudlin que, na cadeira de diretor, especializou-se em episódios de variadas séries de TV, deixa o estilo desse meio escorrer para dentro de seu longa, com sequências simplistas compostas de close-ups para criar aquela dramaticidade artificial, câmeras em leve contra-plongée para aumentar a impressão de ameaça ou importância de determinados personagens e uma pátina novelesca na fotografia de Newton Thomas Sigel que por vezes parece estarmos vendo um telefilme.

No entanto, o que retira Marshall da perigosa fronteira de um filme medíocre é seu elenco. Boseman, apesar de ser o protagonista, não é nem o ponto alto, diria, mas começarei por ele. O ator constrói um personagem estoico, durão e extremamente arrogante. Um homem que tem sempre certeza que ele está certo e só ele. Graças a um roteiro que não tenta canonizar o personagem, o ator tem espaço para criar e, criando, ele nos apresenta a alguém que resvala no desagradável, no aproveitador, mas exala brilhantismo, ao mesmo tempo próximo e extremamente distante do Atticus Finch de Gregory Peck.

Mas o grande destaque da fita é mesmo Josh Gad. Transitando entre um homem acomodado em sua advocacia despolitizada e um idealista que não consegue largar algo que começou, vemos um magnífico crescimento no personagem que ganha ainda mais relevo com as informações indiretas – pelos jornais, pelo telefone, pelo rádio – sobre o avanço nazista na Europa. Ele começa distante e até certo ponto alheio ao preconceito racial que o cerca (não faz parte de seu dia-a-dia) e vagarosamente vê que o mundo parece não querer dar espaço a todos, mesmo que ele não compreenda exatamente o porquê. Há momentos em que o roteiro exagera nas coincidências – quando sua esposa faz as pazes depois de brigar por ele ter aceito a causa criminal -, mas, novamente, elas são muito mais oriundas de uma direção by the book de Hudlin do que qualquer outra coisa.

Ao redor da dupla principal, o elenco também brilha. O procurador, racista ao extremo, é encarnado por um Dan Stevens absolutamente inspirado em nos fazer odiá-lo até o último fio de cabelo. Kate Hudson, por outro lado, faz delicadamente a socialite branca a ponto de nos deixar na dúvida sobre seu verdadeiro caráter. O sempre agradabilíssimo James Cromwell faz o juiz que proíbe Marshall de falar em seu tribunal, mas, mesmo iniciando com essa decisão absolutamente injusta e irritante, vemos, lá no fundo, uma espécie de honestidade hesitante. E, por último, mas não menos importante, há Sterling K. Brown em uma performance contida, cheia de uma realista mistura de medo, raiva e arrependimento que nos toca profundamente a cada olhar.

Marshall, portanto, apesar de por muitos mais momento do que deveria, parecer um longo episódio de uma série televisiva, ganha muitos pontos por ter um elenco azeitado e, claro, por contar um drama de tribunal que não nos permite desviar os olhos da tela. Thurgood Marshall merecia mais do que isso, sem dúvida, mas não foi um mal começo não.

Marshall (EUA, 2017)
Direção: Reginald Hudlin
Roteiro: Jacob Koskoff, Michael Koskoff
Elenco: Chadwick Boseman, Josh Gad, Kate Hudson, Sterling K. Brown, Dan Stevens, James Cromwell, Keesha Sharp, Roger Guenveur Smith, Derrick Baskin, Barrett Doss, Zanete Shadwick, John Magaro, Jeffrey DeMunn, Jeremy Bobb
Duração: 118 min.

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