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Crítica | Marte Um

Um pouco de otimismo em tempos sombrios.

por Roberto Honorato
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Quando a NASA divulgou em 2017 seus planos para uma possível colonização do planeta vermelho até o ano 2030, em uma missão conhecida como Humans to Mars, muitas pessoas ficaram animadas, e podíamos ler ou ouvir quase toda semana alguma atualização sobre o projeto. Surgiu certa sensação de otimismo por conta do potencial da exploração espacial, o que acendeu novamente o interesse no assunto e inspirou pessoas, como o garoto Deivid (Cícero Lucas), personagem de Marte Um, novo longa de Gabriel Martins, um dos responsáveis pelo ótimo No Coração do Mundo

Deivid, ou Deivinho, pode ser uma personagem de Martins, mas a missão para colonizar Marte foi uma proposta real, assim como o sonho do garoto. Realidade e ficção convergem na narrativa estabelecida em um Brasil nos últimos meses do ano 2018, depois de um período conturbado “iniciado” com um golpe de estado sofrido por Dilma Rousseff, terminando com a eleição de Jair Bolsonaro. O longa começou a ser idealizado a partir de 2015, então por conta das diversas mudanças nos anos seguintes, nossa percepção de Marte Um acaba sendo peculiar, talvez até otimista para muitos. 

Morador da periferia, o garoto sonha em ser astrofísico e um dia poder participar da missão Humans to Mars, que também passou a ser conhecida como Marte Um (por isso o título), então se inspira em divulgadores científicos como Neil deGrasse Tyson, tanto que está decidido a viajar para outro estado e assistir uma palestra do astrofísico, mas precisa driblar alguns obstáculos, como o alto preço do ingresso e a autorização do pai, Wellington (Carlos Francisco), que tem o sonho de transformar o filho em um grande jogador de futebol. Porteiro de um edifício de elite, Wellington está vencendo a batalha contra o alcoolismo e não falta às reuniões do AA, e mesmo precisando lidar com os problemas do trabalho, tem orgulho dos filhos e vontade de fazer o melhor. 

Tércia (Rejane Faria) é a matriarca da família Martins, e embora seja uma pessoa alegre e se divirta com seu forró e amigas, sofre um trauma por conta de uma pegadinha de televisão que a assusta ao ponto de fazer com que acredite estar sendo amaldiçoada. Já Eunice (Camilla Damião), a irmã mais velha de Deivid, está cansada de morar com os pais e procura um apartamento com sua namorada, que ela ainda não tomou coragem para apresentar aos pais. 

À princípio, através de linhas narrativas paralelas, vamos conhecendo essas personagens, e por mais que demore um pouco para a trama se assentar e o longa tomar forma, deixando mais clara a intenção e os temas de cada núcleo narrativo, além da proposta geral, o filme nunca deixa de apresentar o cotidiano da família Martins e seus conflitos pessoais. Até imagino se a experiência não seria mais completa se fosse explorado um pouco mais além da premissa que cada personagem carrega, dando atenção maior para alguns momentos que acabaram sendo deixados um pouco de lado no decorrer da obra, mas isso faria com que o filme pudesse se sobrecarregar e destruir completamente o ritmo. 

Muito desse desejo por mais informação vem do excelente trabalho com as personagens carismáticas, bons diálogos e a direção segura de Gabriel Martins, sem contar atuações poderosas como a de Rejane Faria, que traz uma complexidade maior para um drama que seria um desastre nas mãos de uma atriz menos competente. Nesse departamento, o único verdadeiro incômodo sendo um elemento da montagem de Martins e Thiago Ricarte, que é o uso de participações especiais em duas sequências envolvendo celebridades e influenciadores digitais, como o humorista Tokinho, que pode contribuir para o marketing do filme, mas é completamente desnecessário para a trama, já que não traz muita informação nova e sequer serve de alívio cômico, já que quando tenta ser engraçado acaba estragando o tom logo depois de eventos dramáticos mais sérios. Isso é detalhe, mas um que não dá pra esquecer, por mais “irrelevante” que seja para o enredo (obviamente, posso ter perdido alguma informação bem importante nessas duas cenas, isso sempre pode acontecer). 

Há a possibilidade de interpretações assumindo que o aspecto do debate político tenha sido explorado de forma superficial, considerando que pouco é devidamente dito sobre os eventos da década passada, mas deve-se lembrar que o contexto político está presente como pano de fundo para todo o debate social da obra, então é compreensível a decisão de distanciar-se de forma direta, o que até contribui para uma crítica mais sutil sobre o que logo viria a se tornar um país fragmentado, então é bom ver esse lampejo de otimismo e esperança. Infelizmente, hoje temos o conhecimento da inviabilidade da missão de colonização do planeta vermelho e o esquecimento da missão espacial, mas os sonhos de Deivid permanecem vivos e são uma forte fonte de inspiração, o que faz de Marte Um uma das obras mais sensíveis e emocionantes do nosso cinema nos últimos anos. 

Marte Um – Brasil, 25 de agosto de 2022
Direção: Gabriel Martins
Roteiro: Gabriel Martins
Elenco: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião, Cícero Lucas, Ana Hilário, Russo APR, Dircinha Macedo, Tokinho e Juan Pablo Sorrin
Duração: 114 min.

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