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Crítica | Martha Argerich – Meu Sangue

por Marcelo Sobrinho
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O que se esconde por trás da figura mítica de um gênio? Para responder a essa pergunta, a fotógrafa Stéphanie Argerich, filha da grande pianista argentina Martha Argerich, lançou em 2014 um documentário bastante pessoal sobre sua relação com a mãe. A filha mais nova de uma das maiores lendas do piano em todos os tempos reúne um enorme acervo de imagens e vídeos familiares, que dão conta não só da carreira da pianista como também de sua vida como mulher e como mãe. Martha Argerich – Meu Sangue é uma confissão muitíssimo honesta sobre a difícil e ao mesmo tempo afetuosa relação entre as duas.

Narrado pela própria filha e usando a câmera subjetiva na maior parte do tempo, o documentário se inicia com uma cena nada habitual para os fãs da artista – Stéphanie está em trabalho de parto, sentindo contrações dolorosas. Ao seu lado, a mãe Martha Argerich. A mulher ao lado da filha nesse momento lembra muito pouco a pianista que domina seu instrumento como uma leoa e que surge logo a seguir, executando saltos e oitavas complicadíssimos no Concerto para Piano Nº3, de Prokofiev. A construção do documentário é bastante eficaz ao separar essas duas imagens. Mas se hoje a filha mais nova consegue separá-las, quando criança a tarefa estava muito além de suas possibilidades.

Stéphanie confessa a raiva que sentia das imensas filas de autógrafo após cada concerto. Uma mordida em um fã foi resultado disso, conta ela. Muitas foram as viagens juntas e muitas também as horas passadas ao lado do piano, enquanto a mãe se preparava para recitais e concertos e a filha adormecia sentindo a madeira do instrumento vibrar. O retrato que Stéphanie Argerich constrói de sua infância é extremamente íntimo e o roteiro evoca muitos detalhes dessa experiência. Há muitos vídeos dessa época, inclusive alguns que se passam com seu pai – o também pianista Stephen Kovacevich. Suas irmãs, cada filha de um relacionamento diferente, também estão muito presentes no filme. Um dos momentos mais bonitos de Martha Argerich – Meu Sangue mostra a mãe e as três filhas em um parque.

Para aqueles que conhecem bem a carreira da artista, há histórias extremamente interessantes. Martha conta que sua gravação de Gaspard de la Nuit, de Maurice Ravel, uma das mais icônicas de sua discografia, foi realizada quando estava grávida de Stéphanie, sem que ainda tivesse descoberto a gravidez. Sua Ondine, de beleza inigualável, estava de alguma forma impregnada de sentimento maternal. Assim lhe pareceu ao ouvir sua própria gravação meses depois, quando a filha já havia nascido. Com a mesma intimidade com que filma a mãe tomando café ou acordando, Stéphanie a registra tocando em casa outra obra pela qual se notabilizou – o Adagio do Concerto para Piano em Sol, também de Ravel.

Martha parece por vezes uma mulher solitária. Sua insegurança e seu nervosismo antes de entrar no palco surpreendem quem a vê apresentar, segundos depois e com a desenvoltura de uma artista nata, a primeira Danza Argentina, de Alberto Ginastera. A pianista relembra como foi difícil lidar com tanto prestígio quando tinha apenas 17 anos. Quase parou de tocar piano com essa idade. Não sentia ânimo para estudar nem para se apresentar. Desde a década de 1980, Martha trocou os recitais solo por concertos com orquestra ou grupos de câmara. Assim, pôde aplacar um pouco a solidão que a acompanhou em anos de produção musical tão brilhante. Mischa Maisky e Nelson Freire são alguns de seus parceiros mais frequentes.

O final do documentário reserva um de seus momentos mais belos e sensíveis. Quando Stéphanie pergunta à mãe se tocar o mesmo concerto várias vezes desgasta a obra, a pianista responde que não, pois a música sempre se renovava de algum modo, “um pouco como o amor”. O filme de Stéphanie Argerich mostra o amor entre elas exatamente assim – renovado com a experiência que construíram juntas, em um processo de amadurecimento conturbado, mas não menos fascinante. Stéphanie aprendeu a ser filha de uma das maiores artistas do século XX e XXI e Martha, a ser sua mãe. Os olhares que trocam ao final exprimem a compreensão mútua que alcançaram, sem que mais nada precisassem dizer.

Martha Argerich – Meu Sangue (Bloody Daughter) – Suíça / Reino Unido / Argentina, 2012
Direção: Stéphanie Argerich
Roteiro: Stéphanie Argerich
Elenco: Martha Argerich, Stéphanie Argerich, Annie Dutoit, Lyda Chen, Stephen Kovacevich, Charles Dutoit
Duração: 95 minutos

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