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Crítica | Mártires (2008)

por Iann Jeliel
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“Os mártires são seres excepcionais. Eles sobrevivem à dor, eles sobrevivem a privação total. Eles suportam todos os pecados da terra. Eles se entregam. Eles transcendem-se … Eles são transfigurados.”

SPOILERS!

Quando lemos a sinopse de Mártires a primeira coisa que nos vem à cabeça são aqueles filmes de vingança genéricos acompanhados de muita sanguinolência. Não deixa de ser verdade, mas esse filme “acaba” em apenas quinze minutos, com alguns parênteses a se destacar. Depois da angustiante abertura em que Lucie (Mylène Jampanoï) escapa do cativeiro onde está presa e uma breve apresentação por videoteipe da sua relação em orfanato com sua melhor (e única) amiga Anna (Morjana Alaoui), nos deparamos com uma criatura sobrenatural, que acompanhou a garota na infância. Corta, e vamos sem muito contexto para outra sequência apresentando uma típica família tradicional – o pai (Robert Toupin), a mãe (Patricia Tulasne), o filho (Xavier Dolan, sim, aquele diretor de cinema) e a filha (Juliette Gosselin) – almoçando. Conversa vai, conversa vem, de repente, Lucy toca a campainha e sem muita conversa, elimina grotescamente todos dali – incluindo as crianças. Pronto, assim “acaba” o filme de vingança.

Por cima, após essa chacina, Lucy volta a ser perseguida pelo fantasma que lhe assombrou no passado, surgindo, a partir daí, um novo filme. Em alguns poucos minutos, o cineasta Pascal Laugier conduz tal mudança completa de tom narrativo de uma maneira crível e visceral, nos absorvendo completamente a atmosfera sombria e perturbadora dos bastidores daqueles traumas, conduzida por metamorfoses semelhantes, sempre abruptas, radicais e graficamente impactantes. Tal característica gráfica coloca o filme dentro de um movimento do cinema de terror francês surgido na virada desse século, popularmente denominado como new french extreme. Com Claire Dennis e Gaspar Noé como seus principais expoentes, o new french extreme é um cinema de características apelativas, não só na violência, como na abordagem moral das suas histórias. Próximo ao torture porn americano, o “subgênero” tem como primordial intuito, chocar seu público.

Geralmente, filmes construídos com esse único intuito, além de distanciar a sua audiência para um nicho muito específico, por vezes, caem no território do choque fácil: jorrar litros de sangue na tela, colocar cenas desafiadoras de assistir, pelo conteúdo sexual ou tabus transgressores comumente enxergados como perturbadores e “violá”, missão comprida. No entanto, o caso de Mártires é diferente. Laugier não busca o apelo “porque sim”. Ele tem um objeto crítico a atingir e utiliza o estilo do movimento na estrutura mencionada para criar o choque a partir de quebras de expectativas, onde cada mudança de enredo vai revelando o verdadeiro intuito da obra.

Apesar de não ser tematicamente debatido de maneira complexa – pelo contrário, é de maneira puramente maniqueísta –, a denúncia ao extremismo religioso, dado o tamanho apelo imagético, traz muita eficiência reflexiva. Méritos para a utilização do sobrenatural desde cedo como ponte de verossimilhança até a inserção da temática lá para o terço final, quando revela-se  a motivação dos torturadores. Antes disso, vale destacar como o roteiro consegue nos deixar em dúvida se aquele local é o verdadeiro paradeiro dos torturadores. Não só pela apresentação carismática da família na primeira cena depois do título aparecer, mas por logo depois, quando Anna aparece na casa ensanguentada e questiona, como um bom contraponto humano, a amiga cega de vingança e transtornada psicologicamente.

A revelação de que a criatura que mutila Lucy é uma criação dos traumas da sua mente, só ajuda a maturar a dúvida, e o pretexto da mãe não ter morrido na chacina inicial gera o conflito-chave da narrativa, que daí para frente, mesmo com algumas pausas em fade-outs, não interrompe  a escalada de intensidade. O mais cruel é perceber, depois, como a dúvida foi um artifício para pesar a mão na culpa, quando Anna descobre a verdade e passa a ser a nova vítima. Depois dela assumir o protagonismo, a narrativa assume o seu lado mais apelativo, validado em coerência e propósito também pela inserção sobrenatural. Aquela criatura contorcida vinda da mente de Lucy não foi filmada na mesma estética realista e crua do restante à toa. Quando Anna descobre aquela mulher desconfigurada com um capacete de ferro pregado no crânio, o impacto da sua figura traz uma assimilação direta com a outra. A diferença é que essa é uma pessoa de verdade, que ficou daquele jeito por ter sido torturada mais tempo pelas pessoas que fizeram isso com Lucy.

Como se isso não bastasse para pôr culpa suficiente na personagem e até no telespectador que foi estimulado a duvidar da vítima na construção narrativa, o filme ainda gasta seus últimos trinta minutos, literalmente, torturando explicitamente Anna, e consequentemente o público, que aprendeu a se importar com ela nas mil adversidades anteriores da história. Nessa parte, Mártires beira o inassistível, mas não se configura ainda como aquele apelativo barato do “choque pelo choque”. Só observar que, apesar de as vítimas serem mulheres jovens, não há conteúdo de violência sexual na tortura, porque a seita não precisa disso para atingir seus objetivos. Também não é gratuito, pois é uma forma prática de explicar a exata metodologia dos fanáticos liderados por Mademoiselle (Catherine Bégin) – vulgo “a mulher mais detestável do cinema”!

Diante disso, retomo o que falei a despeito da não necessidade de tornar complexas as reflexões temáticas. Após passar tanto tempo observando tamanha tortura física e psicológica em detalhes, sem esperança de escapatória, quando descobrimos que o objetivo é levar os torturados ao limite, a ponto de transformá-los em mártires (leia-se essa palavra no contexto em que ela é explicada no enredo – colocada em aspas no início do texto) na expectativa de que enxerguem o pós-morte, sobrevivam para contar a história a ser transformada em dogma (aplicando o significado literal de mártir: referindo-se a alguém que morre em nome de um ideal social, político ou, nesse caso, religioso), o filme já comprova o seu ponto crítico sem precisar ir mais a fundo ou oferecer respostas mais claras – o final em aberto beira à sacanagem, mas não tinha como ser melhor. No entanto, Pascal Laugier ainda reforça a mensagem trazendo referências imagéticas nas atrocidades capturadas que rememoram aquelas que foram cometidas historicamente pela religiosidade em nome das respostas divinas.

Mártires é rotulado como um dos filmes mais perturbadores já feitos – e é mesmo – pela extrema violência característica do movimento a que pertence, mas ele só consegue ser verdadeiramente incômodo com relevância, porque é acompanhado de uma exímia, imprevisível e envolvente construção narrativa. Definitivamente, uma obra inesquecível do terror. Daquelas difíceis de recomendar, porque é preciso ter estômago forte, e dificilmente dá para encarar mais de uma vez, mas que apresenta, como poucas, uma desafiadora experiência cinematográfica de qualidade.

Mártires (Martyrs | França, 2008)
Direção: Pascal Laugier
Roteiro: Pascal Laugier
Elenco: Morjana Alaoui, Mylène Jampanoï, Catherine Bégin, Robert Toupin, Patricia Tulasne, Juliette Gosselin, Xavier Dolan, Louise Boisvert, Jean-Marie Moncelet, Jessie Pham, Erika Scott, Isabelle Chasse, Emilie Miskdjian, Tony Robinow, Anie Pascale, Mike Chute
Duração: 109 minutos

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