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Crítica | “Matogrosso” – Ney Matogrosso

Por debaixo dos panos.

por Iago Iastrov
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Há momentos na carreira de um artista em que tudo combina: experiência, técnica e intuição se encontram para criar algo especial. Para Ney Matogrosso, esse momento chegou com o álbum Matogrosso, lançado em 1982 pela Ariola/Barclay. Posicionado estrategicamente após o sucesso estrondoso de Homem com H, este álbum mostra um Ney em controle total, navegando entre experimentação e contato com o público massivo com uma facilidade que poucos intérpretes conseguem alcançar. A produção de Mazzola merece destaque logo de cara. Cada elemento está no lugar certo, desde as guitarras de Hélio Delmiro até o piano de César Camargo Mariano. A instrumentação é rica, mas nunca compete com a voz. As cordas desenham paisagens sonoras envolventes, enquanto os metais aparecem na medida exata, criando texturas que oscilam entre intimismo e exuberância controlada.

O álbum abre com Alegria Carnaval e já estabelece o tom: aqui não há euforia gratuita. Ney canta essa celebração com uma leveza agridoce que revela camadas de complexidade por trás da aparente festividade. É como se o carnaval fosse visto através de um filtro melancólico, mais reflexivo que efusivo. Em seguida, Uai, Uai traz Rita Lee para uma brincadeira com o regionalismo mineiro que funciona perfeitamente bem (além de ser deliciosamente engraçada) sendo moderna, sem ser caricata ou perder as raízes. O núcleo irônico do disco está em Por Debaixo dos Panos, onde Ney entrega uma das interpretações mais cheias de sentidos de sua carreira. Os arranjos minimalistas criam espaços para que cada palavra ganhe peso, transformando a música numa confissão íntima e cínica. Logo depois, Tanto Amar de Chico Buarque recebe um tratamento que equilibra paixão e contenção, uma lição de como interpretar um clássico sem tentar reinventá-lo completamente.

Primeiro de Abril traz outra ironia afiada, com Ney cantando como quem morde e sopra, embalado por arranjos que são “puro veneno açucarado“. Já Não Faz Sentido marca o maior momento vocal do álbum: uma fragilidade tão genuína que chega a ser dolorosa de ouvir, sustentada por uma produção que intensifica cada emoção. O alívio cômico maior vem com Jonny Pirou (Johnny Be Good), uma divertida releitura do clássico de Chuck Berry filtrada pelo tropicalismo de Ney. Não é a faixa mais profunda (na verdade, a que eu menos gosto do disco), mas funciona como respiro necessário antes da densa e sensacional Promessas Demais. Aqui, a poesia de Paulo Leminski encontra a melodia de Moraes Moreira e a interpretação magistral de Ney numa convergência perfeita. O cantor entrega cada verso como quem conta um segredo, enquanto os arranjos doces e melancólicos sustentam essa intimidade com absoluta perfeição. O encerramento fica por conta de Aquela Fera, uma explosão de energia que contrasta com todo o intimismo anterior. É tribal, intensa, nervosa, uma despedida que, paradoxalmente, soa como nova promessa.

O que torna Matogrosso especial é sua capacidade de abraçar influências diversas de forma orgânica. Não há fragmentação estilística, mas sim uma síntese natural que demonstra a maturidade artística de Ney. As percussões são particularmente inteligentes, acompanhando as emoções das letras em vez de apenas marcar tempo. Mais que um simples álbum, Matogrosso funciona como a sequência da estrada entre o sucesso comercial e a integridade artística, provando que é possível atingir ambos sem concessões. É o documento de um momento raro onde um intérprete alcança sua forma ideal, criando arte que dialoga com tradição e contemporaneidade simultaneamente. Um disco que revela novas camadas a cada escuta.

Aumenta!: Por Debaixo dos Panos
Diminui!: 

Matogrosso
Artista: Ney Matogrosso
País: Brasil
Lançamento: 1982
Gravadora: Ariola
Estilo: MPB, Samba, Rock, Pop, Disco, Dance
Duração: 34 min.

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