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Crítica | Matrix Resurrections (Com Spoilers)

Desejo e medo.

por Kevin Rick
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O amor é a gênese de tudo.

A escolha é uma ilusão. Essa é uma frase que define os conceitos de realidade da franquia MatrixEntre a verdade dolorida e as mentiras que nos são contadas, personificadas em duas pílulas icônicas, as Irmãs Wachowski revolucionaram a ficção científica em 1999. O longa original transformou a imagem do blockbuster hollywoodiano, vibrando com filosofia e ideias sobre a realidade que geram discussões calorosas até hoje, assim como criou uma paranoia na internet com o famoso bullet time, o kung-fu e a tecnologia hacker.

No entanto, muito do que há no primeiro Matrix não é necessariamente original – o que realmente é?. Existe inspiração em Ghost in the Shell, o trabalho literário de Philip K. Dick e William Gibson e até Cidade das SombrasA trilogia original também segue o manual do herói predestinado e messiânico bem de perto e sem muitos desvios de clichês. Mas a execução elaborada das Wachowski, o espetáculo visual, o aprimoramento técnico, a narrativa intrigante e os bons personagens, deixam o filme original no seu patamar de grande impacto para a Sétima Arte, enquanto as duas sequências, Reloaded Revolutions, conseguem ser razoavelmente divertidas em sua megalomania de ação.

E como nenhuma franquia de renome fica morta em Hollywood, especialmente com a atual crescente de nostalgia e a ressurgência da estrela de Keanu Reeves com os filmes do John Wick, Matrix retornou para sua quarta entrada. Dessa vez, as Irmãs Wachowski estão separadas, com Lana assumindo a direção sozinha e o roteiro com participação de David Mitchell e Aleksandar Hemon. A tarefa? Agradar uma gama completamente insana de espectadores globais com uma sequência cheia de expectativas.

Dado este pequeno contexto, retorno à frase que citei no início da crítica. A escolha é uma ilusão. Existe uma grande piada interna sobre isso em Matrix Resurrections. Como se Lana Wachowski assumiu o filme porque, bem, se ela não o fizesse, a Warner Bros. iria entregar este universo na mão de algum outro artista. Isso não é nem uma interpretação minha, mas é explicitamente dito na obra com muito humor de autoanálise. Então, Lana realmente teve uma escolha? O longa segue essa linha de questionamento metalinguístico com o próprio conceito e propósito de se fazer um novo Matrix dentro da engrenagem hollywoodiana. Assim, Resurrections se distancia do Mito da Caverna, de Platão, e se aproxima de O Show de Truman.

 

O Show de Thomas Anderson

A premissa de Matrix Resurrections não é tão distante do original. No filme de 1999, a vida aparentemente familiar de Thomas Anderson não era real, e como quase toda a humanidade, o personagem estava preso dentro de um programa de computador criado pela máquina que dá nome à franquia. Na nova entrada da cinessérie, Thomas, conhecido por nós como o heróico Neo, está mais uma vez preso em uma simulação. No entanto, dessa vez a vida ordinária é substituída pelo mundo ultraconectado das mídias sociais, com o protagonista vivendo um famoso designer de games responsável pela criação da série Matrix (!).

Interpretado por um Keanu Reeves barbudo, cabeludo e experiente, mas igualmente atormentado pela sua existência e pelo propósito da vida como no filme original, o primeiro ato do longa traz novamente o debate filosófico de realidade para o personagem, mas com uma camada extra – e principal – de metalinguagem e autoconsciência em torno da produção e da realidade de mercado do Cinema blockbuster. Afinal, o mundo realmente precisa de mais Matrix?

Enquanto trabalhava em um novo videogame, Thomas é informado por seu parceiro de negócios Smith (Jonathan Groff) que a Warner Bros. está forçando o protagonista a criar uma sequência de Matrix. Existe tanto um debate criativo sobre a existência dessa sequência, como ela deveria ser feita, quais seus significados para a audiência e como facilmente capitalizar no legado da obra, quanto um deboche total do desejo corporativista de ganhar dinheiro em cima de uma propriedade conhecida, na sua típica nostalgia pela nostalgia. Assim, Lana levanta um exercício extremamente interessante de autocrítica e autorreferência para criticar a indústria cinematográfica.

É uma coincidência colossal que este filme tenha sido lançado uma semana após Homem-Aranha: Sem Volta para Casa. Ambos os blockbusters utilizam da nostalgia como elemento base de construção narrativa, mas com abordagens extremamente dissemelhantes. O filme do teioso preza pelo fanservice, a auto-satisfação e a enxurrada de referências para criar euforia com a memória afetiva de seu público, enquanto Lana utiliza a nostalgia para discutir conforto e mediocridade autoral, por intermédio de um roteiro extremamente inteligente que força o próprio público a fazer perguntas sobre o impacto negativo da cultura de reboots, spin-offs, sequências e universos compartilhados.

Afinal, como diz Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II): “Nada conforta a ansiedade como um pouco de nostalgia“. E Lana problematiza essa comodidade. Vemos isso com a troca de atores para os personagens coadjuvantes, como o Agente Smith e Morpheus, interpretados de maneira irônica em suas citações e nuances famosas pelos novos atores, claramente confrontando o “fã” – só relembrar todo o rebuliço online quando Laurence Fishburne e Hugo Weaving não foram confirmados no filme. Também gosto como a cineasta utiliza a cenografia nesse aspecto, como a cena do banheiro que satiriza o antigo encontro icônico entre Neo e Morpheus, ou então a recriação de alguns cenários do original com intuito de fazer comentários sobre revisitação vazia, vide o também recente Ghostbusters: Mais Além.

Existe um tom de subversão em forma de chacota de cenas icônicas como Neo tentando voar ou o constantemente citado bullet time, as inserções de imagens dos filmes anteriores do Matrix, entre vários outros comentários visuais. Mas a maior carga de sarcasmo e cinismo estão nos diálogos do primeiro ato. Lana imprime um tom ora (deliciosamente) cômico, como nas sequências na empresa Deus Ex Machina (he,he) com as teorias “do que Matrix é sobre”, ora dramáticos como nos momentos íntimos de Neo – diria que existe até um toque de surrealismo com os cenários repletos de espelhos que ressoam a insanidade do protagonista. A diretora ainda coloca uma cereja no bolo com a cena pós-crédito “vazia” sobre os programadores discutindo sobre o “Gatrix”, enquanto o contexto da fala é justamente uma crítica ao efeito manada de esperarmos os créditos passarem para termos uma palinha do que está porvir. Filmes não são mais experiências únicas.

Em Resurrections, Matrix mudou para uma narrativa mais provocativa e menos de espetáculo – apesar de tê-lo no segundo ato, que falarei mais à frente. Para quem acredita que a franquia é apenas um desfile técnico de ação e mitologia sci-fi, haverá desapontamento, resultando nas reações divisivas que estamos vendo por aí. Mas a obra sempre foi sobre brincar com o conceito da realidade e sobre os dilemas da existência humana, e Lana faz um “ataque” às próprias engrenagens por trás da sua produção. A metalinguagem, a metaficção e a autoconsciência que criam questionamentos sobre Cinema e seu mercado estão no campo assertivo das discussões da farsa. De sentimentos falsos com a Sétima Arte. Da fraude do autoral. E isso é resultado da bagagem e da experiência de Lana com seus sucessos e fracassos pelo blockbuster. Tal qual a escolha de Neo, Lana nos indaga se, como espectadores, queremos o autêntico imperfeito ou o conforto enganoso.

 

O Poder do Amor

Depois da exposição metalinguística que traz o contexto criativo em debate e motivação, Resurrections inicia seu segundo exercício, que é basicamente tentar fazer o filme dentro do molde que critica. Alguns podem chamar de hipocrisia, mas acredito que é de uma tremenda ingenuidade não interpretar a mudança narrativa como intencional. Talvez Lana se sabota no enredo clichê e tropece em tramas batidas no segundo ato, mas faz isso com autenticidade, contando uma história própria, ainda que simples.

E que mudança narrativa seria essa? Uma história de amor. Desde os minutos iniciais com as cenas da cafeteria, o longa dá indícios do foco no relacionamento entre Neo e Trinity (Carrie-Anne Moss) como base dramática e arco narrativo da obra. Vemos o protagonista escolher a pílula vermelha e se dar conta de que nunca foi criador de videogames, mas esteve no controle do analista (Neil Patrick Harris) que ressuscitou ele e sua amada após o eventos de Revolutions para usá-los como fonte de poder de controle. Após a revelação, Neo apenas se importa com uma coisa: salvar Trinity.

É notável como Lana se distancia do estilo narrativo da trilogia original. Sim, o romance de Neo e Trinity sempre faz parte da franquia, mas a cineasta usa a história de amor da dupla como motor narrativo em Resurrections. A revolução, o arco de escolhido e a trama macro de homem vs máquina dos filmes anteriores são todos puramente tangenciais na quarta entrada. A pegada é muito mais pessoal, com uma dieta de close-ups shots de gestos românticos, como o agarrar de mãos entre Neo e Trinity. A trilha sonora de Tom Tykwer e Johnny Klimek é serena e reflexiva, enquanto a paleta de cores em tons frios dominada pelo verde da trilogia original é substituída por um filtro mais vivo e solar, e até os figurinos e cabelos são mais espalhafatosos. É uma história sobre a esperança e o poder do amor, então Lana quer “pintar o céu de arco-íris“.

Há, no entanto, uma leve expansão da franquia, como na inteligente relação entre pessoas e sentientes, algo que não apaga o legado de Neo – bacana como Lana não anula suas sequências malquistas pelo público. O aprimoramento dos efeitos especiais também são notados visualmente, conforme Lana escolheu filmar digitalmente, e não em película, resultando em mais fluidez visual em perseguições de carros e as batalhas com os bots, como também nas excelentes transições de espelhos. Matrix se modernizou; sem mais viagens por telefone ou longas sequências em câmera lenta. Porém, o filme não reinventa a roda técnica como seus predecessores, se comprometendo a coreografias mais comuns e sem nenhuma set-piece de grande destaque.

Mas acredito que esta experiência de ação menos, digamos, grandiosa, é um efeito do tipo de história que Lana quer contar. Os combates são esparsos e rápidos, com a narrativa sempre retornando ao drama de Neo e Trinity. Até mesmo os personagens secundários têm que fazer o máximo com o mínimo tempo de tela, restando elogios para a economia narrativa de Lana e os atores que conseguem deixar impacto com o tempo curto, dando destaque para o retorno de Niobe (Jada Pinkett Smith) e a introdução da super simpática Bugs (Jessica Henwick), como também o carisma de Jonathan Groff e Yahya Abdul-Mateen II nos sapatos famosos que calçam.

Outro destaque é o de Neil Patrick Harris. O ator recebe uma tarefa complexa de entregar vários monólogos ao longo da obra, mas o faz com muita qualidade, seja na pegada mais irônica, seja na parte mais canastrona do vilão unidimensional. Aliás, Resurrections contém muitos momentos de exposição, e é interessante pontuar a qualidade da direção de Lana para dinamizar essas sequências, rodando a câmera, mudando foco, acelerando e desacelerando o ritmo – aquela ode ao bullet time intenso do analista é especialmente formidável.

E o texto continua finíssimo em seus diálogos profundos e pensamentos filosóficos, diluindo um discurso gracioso sobre amor e binaridade. Racional e emoção. Delineando a existência e a condição humana, enquadrados na ótima discussão de sentimentalismo que perfaz o monólogo do analista sobre desejo e medo. Essa relação entre querer e receio que comanda nossos desejos mais íntimos. Afinal, todos queríamos um novo Matrix, mas todos tínhamos medo do resultado, não é mesmo? Lana discute essa relação tanto pelas engrenagens hollywoodianas com a metalinguagem, quanto pelo lado humano com sua história de amor entre Neo e Trinity. Dois exercícios diferentes bem claros, mas que se completam muito bem na narrativa da obra.

Matrix Resurrections é um filme que discute sua existência e sua realidade antes de nos contar sua história principal. Lana Wachowski teve um cuidado magistral em fugir do sistema hollywoodiano com a autoconsciência e a autocrítica no seu roteiro sarcástico e cínico, em um dos filmes mais surpreendentemente divertidos do ano. E após essa proposta mais corajosa e complexa, Resurrections se torna um filme de beleza simples dentro de um blockbuster de ação competente. O romance tem menos qualidade por ser convencional, mas a química da dupla é palatável e Lana conduz sua trama de paixão com uma virtude poética emocionante. É uma história reconfortante sobre o poder do amor. Ao final, Neo e Trinity voam se agarrando a uma segunda chance.

Matrix Resurrections (The Matrix Resurrections) – 23 de dezembro de 2021
Direção: Lana Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell, Aleksandar Hemon
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jonathan Groff, Jessica Henwick, Neil Patrick Harris, Jada Pinkett Smith, Priyanka Chopra Jonas, Christina Ricci, Lambert Wilson, Andrew Caldwell, Toby Onwumere, Max Riemelt, Joshua Grothe, Brian J. Smith
Duração: 148 min.

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