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Crítica | Matrix Resurrections (Sem Spoilers)

Nada acalma mais a ansiedade do que um pouco de nostalgia.

por Roberto Honorato
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Déjà Vu costuma ser um glitch na Matrix.

Isso acontece quando tentam mudar algo.

A única unanimidade na carreira das irmãs Lana e Lilly Wachowski continua sendo o Matrix de 1999, uma obra que revolucionou não apenas a ficção científica, mas o cinema, apresentando o incrivelmente popular conceito de bullet time, referenciado e parodiado à exaustão, além de se aproveitar de uma narrativa transmídia que se estendeu por quadrinhos, videogames e antologias animadas (Animatrix). O filme foi um fenômeno tão forte que catapultou a carreira das Wachowski, antes conhecidas pelo ótimo Ligadas pelo Desejo e logo passaram a ser a dupla mais poderosa de Hollywood. Mas a unanimidade do público acaba aí, porque as irmãs trilharam um caminho de diversas obras bastante divisivas até hoje, como a incompreendida obra-prima Speed Racer, ou mesmo as continuações de Matrix, Reloaded e Revolutions.

Embora eu faça parte do grupo que considera as Wachowski diretoras com uma enorme capacidade para narrativas complexas executadas de maneira dinâmica (tudo bem, a cena do Arquiteto em Reloaded é visualmente entediante, essa eu deixo passar), não podemos negar que há inconsistências na filmografia das duas, como o bem intencionado, mas mal executado, O Destino de Júpiter, onde quem já não gostava delas passou a gostar menos. Contudo, as Wachowski se reinventaram com o ambicioso Cloud Atlas (A Viagem foi uma péssima tradução, me recuso a usá-la), adaptando o livro homônimo de David Mitchell para uma jornada de escala épica, que também pode ter seus problemas, mas foi o começo de uma nova fase para ambas, e isso nos leva direto para Matrix Resurrections, uma arriscada tentativa de retornar para o universo da obra mais adorada da dupla. 

No contexto atual de reboots, revivals, remakes, spin offs e crossovers, a volta de Matrix tem sido uma das mais curiosas, considerando como a trilogia original impactou o cinema e a aversão das Wachowski ao sistema de Hollywood, se apoiando em reciclar filmes com um público estabelecido para fazer um dinheiro rápido. Antes mesmo das gravações, Resurrections preocupou os espectadores pela ausência de Lilly Wachowski, que recusou retornar para um quarto filme da franquia, enquanto Lana decidiu seguir em frente. 

De forma bem resumida, e sem entregar detalhes demais da trama, Matrix Resurrections apresenta o cotidiano de Thomas Anderson (Keanu Reeves), um homem que conseguiu o sucesso e adoração do público, mas não consegue mais se conectar com as pessoas e o mundo que acreditou conhecer a vida inteira. Ao questionar sua realidade, o Sr. Anderson também precisa confrontar sua própria identidade e seguir o coelho branco para uma nova, porém familiar, jornada.

Essa não seria uma obra de Lana Wachowski se não fosse resumida por todos como “divisiva”, e concordo que há muitas mudanças entre o Matrix que conhecemos e essa nova versão, algumas capazes de fazer com que esse seja o típico filme ame ou odeie – nesse caso, é bem difícil que a maioria das pessoas encontrem um meio termo, embora não seja impossível. Essa parece ser a proposta de Lana, que tenta equilibrar uma narrativa capaz de continuar (talvez concluir) a jornada de Neo e Trinity (Carrie-Anne Moss), ao mesmo tempo que procura fazer um comentário sobre o estado da franquia e da indústria cinematográfica de forma geral.

Isso quase obriga a diretora a se utilizar de uma pesada metalinguagem, fazendo desse Matrix menos uma exploração dos conceitos anteriores, que mais se assemelhavam a algo inspirado na proposta de um autor como William Gibson (mais por conta da ambientação e a relação entre humanos e tecnologia) e o próprio Jean Baudrillard (que inspirou muito dos debates do primeiro filme por conta de seu texto, Simulacros e Simulação), e mais uma leitura do próprio conceito de narrativa e ficção, que estão bem mais ligados ao que Philip K. Dick costuma abordar em seus livros, sobretudo Ubik ou O Homem do Castelo Alto.

Lana divide o roteiro com os autores Aleksandar Hemon e David Mitchell, com quem já trabalhou antes em Sense 8 e Cloud Atlas, obras que, como mencionei anteriormente, ecoam em Resurrections por conta de sua análise mais crítica, de narrativas interessadas em uma ficção científica de foco maior no elemento humano, em vez de conceitos mirabolantes, o que fica evidente na forma como o roteiro procura resolver seus conflitos através de momentos mais emocionais, apelando até para alívios cômicos, uma coisa que pode incomodar quem está acostumado à abordagem da trilogia original, com uma trama guiada por diálogos memoráveis, mas também muita ação – o que funciona perfeitamente no primeiro filme, mas fica um pouco previsível nas continuações, como o primeiro encontro de Neo com Seraph (Collin Chou), que rende uma batalha dispensável e uma das interações mais estranhas da franquia, com Seraph dizendo que só reconheceria Neo se lutasse com ele.

Realmente, há muitas mudanças entre a trilogia original e Resurrections, inclusive no visual, que independente de ser conhecido por alguns apenas como um “filtro verde” (fazer o quê), tinha a marcante fotografia de Bill Pope, e aqui muda para o mundo mais colorido e vibrante de Daniele Massaccesi e John Toll, o que funciona dentro da narrativa, com essa “nova versão da Matrix”, ainda que eles também façam um bom trabalho em replicar a identidade de Pope nas sequências envolvendo cenários reprisados de longas anteriores, sem contar a decisão de Lana em gravar no digital ao invés de em película, o que também dá uma qualidade mais limpa para o visual.

Uma coisa que imaginei talvez não gostar foi a mudança de Don Davis pela dupla Tom Tykwer e Johnny Klimek nas composições musicais, mas a troca teve um efeito positivo, com um som que abraça uma harmonia minimalista, o que fortalece os segmentos mais íntimos entre as personagens e surpreende quando precisa dar peso para momentos de batalha épicos e barulhentos – não tão extravagantes e criativos quando dos longas anteriores, mas não menos emocionantes.

Keanu Reeves pode estar ainda no modo John Wick de atuação, mas ele volta a ser o Neo que conhecemos sempre que interage com Carrie-Anne Moss, e os dois exibem a mesma química que sempre tiveram em tela. O filme chega a comprometer parte da adrenalina das sequências de ação para focar no romance das personagens principais, e entrega sua catarse emocional através da nostalgia, o que cria uma certa contradição na proposta de Lana, interessada em comentar a forma como as produções atuais apelam para o fanservice na intenção de criar uma forte reação do público, mas Resurrections não deixa de fazer o mesmo em alguns momentos, não importa o quanto tente mudar o rosto de alguns personagens, os nomes continuam os mesmos. 

Além de Keanu e Carrie, Jada Pinkett Smith reprisa seu papel como Niobe, mas alguns personagens criam um vácuo grande na dinâmica do elenco, como o icônico Morpheus de Laurence Fishburne, que tecnicamente morre após os filmes, durante um dos jogos de Matrix, que são canônicos, então há essa desculpa para sua ausência, mas isso ainda deixa um espaço que Lana tentou preencher com Yahya Abdul-Mateen II, um ótimo ator que conseguiu trazer sua própria interpretação de um Morpheus mais descontraído, que funciona para essa versão na superfície, ainda que não tenha a força necessária para causar o impacto que o próprio filme imagina ter causado.

Das novas adições, a personagem de Jonathan Groff é a que mais parece perdida em toda a trama – que já não é simples -, embora ele seja um ator carismático. Uma das surpresas acaba sendo a Bugs de Jessica Henwick, uma atriz que consegue ser a melhor parte de toda produção em que está envolvida, e aqui rouba a cena com uma personagem divertida, sem deixar de apresentar um peso dramático importante para a trama principal. Outra atuação impressionante é a de Neil Patrick Harris, em um papel misterioso, mas que ele assumiu com enorme naturalidade e acabou sendo um dos destaques do elenco.

Matrix Resurrections continua a jornada de Neo e Trinity, assim como questiona sua própria existência. Embora tente algo arriscado com seu exercício de metalinguagem, o filme nem sempre acerta na proposta de convergir sua trama de ficção com o comentário sobre a indústria cinematográfica e Matrix como franquia de forma orgânica, chegando a deixar evidente quando está sendo uma continuação para os filmes anteriores ou um discurso contra a falta de criatividade de Hollywood. Se esses dois extremos fossem melhor amarrados, teríamos algo tão poderoso quanto o filme original, o que pode não ser o caso de Resurrections, mas há uma beleza na mera tentativa que eu não consigo deixar de apreciar.

Em um sistema de filmes enlatados e salas de cinema invadidas pelos blockbusters do mesmo estúdio, Lana Wachowski nos mostrou a porta, somos nós que devemos decidir atravessá-la. 

Matrix Resurrections (The Matrix Resurrections) – 2021
Direção: Lana Wachowski
Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell, Aleksandar Hemon
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jonathan Groff, Jessica Henwick, Neil Patrick Harris, Jada Pinkett Smith, Priyanka Chopra Jonas, Christina Ricci, Lambert Wilson, Andrew Caldwell, Toby Onwumere, Max Riemelt, Joshua Grothe, Brian J. Smith
Duração: 148 min.

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