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Crítica | Matthias & Maxime

por Fernando JG
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Primeiro de tudo: é necessário que se perceba os temas existentes na filmografia de Dolan. Ele não vem construindo uma obra monotemática, muito pelo contrário. Apesar de sempre buscar o real nas suas narrativas, encontramos, até o momento, uma preocupação com a verdade da vida, que vai, invariavelmente, passar pelos problemas familiares (Eu Matei Minha Mãe e Mommy), que encontra com os dramas pessoais (Tom na Fazenda; É Apenas o Fim do Mundo e Laurence Anyways) e, numa esfera mais delicada, reverbera nos problemas do amor (Amores Imaginários e Matthias & Maxime).  É neste último filme que Xavier Dolan mostra paixão, sensibilidade e madureza, resultando em uma obra-prima. 

Que Xavier Dolan se sai muito bem em produções intimistas e autorais, não é novidade para ninguém. Desde a sua estreia oficial, com Eu Matei Minha Mãe (2009), o cineasta canadense se destaca por introduzir em suas criações os aspectos da vida real, ainda que inflados pela ficção. Dolan se sobressai toda vez em que foca trabalhar os dramas e os impasses da passagem da juventude para a vida adulta, e é esse justamente um aspecto fundante da sua filmografia, que tem como uma de suas variantes o tema da formação. 

Com um traço muito distinto e pessoal, o jovem cineasta compõe mais uma obra de amor: Matthias & Maxime (2019), o seu último lançamento, que machuca só pela ideia e eleva o cinema de Dolan para uma emotividade muito característica de um momento – que marca também o seu próprio processo de maturação no cinema.  Pelo fato de tratar de um tema tão específico, e construir uma unidade estilística tão singular em Matthias & Maxime, é compreensível que esse longa não tenha caído no prestígio popular, ainda que tenha recebido ótimas críticas na França. Não é qualquer um que vai gostar e se interessar, já que o filme depende de uma série de fatores para que ele funcione, e o principal deles é o momento de quem vai receber o longa. Num geral, filmes sobre o amor são trabalhos de momento, e escritos, entre outros, para alcançarem a um determinado público, mas não só, obviamente. E esse não é diferente. Um argumento que trata da impossibilidade do amor, e ajusta o tema à mise-en-scène, o longa se torna mais doloroso na medida em que se percebe como Dolan trabalha o platonismo em sua obra.

Matthias (Gabriel d’Almeida Freitas) e Maxime (Xavier Dolan) são amigos de infância, cresceram juntos e agora são dois homens adultos. Enquanto Matt trabalha em uma empresa suit n’ tie e porta um decoro social em um trabalho que todo jovem ascendente na carreira empresarial almeja, Maxime está preparando as suas coisas para ir morar na Austrália. Matthias e Maxime são dois de um grupo de amigos de infância, que viram um ao outro crescer. Assim, o arco narrativo se concentra em armar a ponte para um momento central do longa: o reencontro dos amigos na casa de Rivette (Pier-Luc Funk). Antes disso, Matt e Max vão juntos para a casa do amigo, algo em torno de 40 km de distância. Com um trabalho de câmera sempre a incluir ambos no mesmo enquadramento, é assim que Dolan entrega os primeiros momentos da sua obra.

Quando, na casa de Rivette, Max e Matt aceitam gravar um curta-metragem, tudo se desestabiliza no momento em que descobrem que a cena envolve um beijo, num shot surrealista para um projeto da ambiciosa irmã de Rivette, uma aspirante a cineasta. É neste círculo dramático que Dolan vai estudar o amor. Longe de responder a qualquer pergunta, o filme lança questões, que não se resolvem. O olhar maduro e adulto do diretor está aí: em perceber que nem sempre as coisas se resolvem, e muitas das vezes elas só acabam, ou resultam numa forma disforme. Assim, Dolan abomina o conceito de Deus ex machina em suas produções.

O argumento do filme, basicamente, gira ao redor dessa peripécia. O que se desenrola, a partir de então, é uma consequência do beijo. Com a amizade abalada, após a gravação, o filme transita entre cenas estáticas e mornas para poder dar conta de um status psicológico do não-realizado, de uma intenção que nunca se concretiza no real. O beijo técnico, além de trazer à luz um sentimento reprimido, apenas mostra que nunca nada poderá acontecer entre eles, mesmo que desejem um ao outro. Na película, nada acontece durante um longo tempo, e isso é proposital. Essa é a tônica do filme. E esse nada é, na realidade, o grande motivo da narrativa. Longe de ser uma história de amor em que tudo acontece, é justamente sobre o Nada, o não-realizado, o impossível, que o diretor dolorosamente caminha com seu longa. Por isso tão intragável para algumas pessoas.  E por isso tão difícil de assistir. 

O primeiro ato apresenta essa íntima relação entre amigos, com um enquadramento que sempre focaliza os dois no mesmo retrato, num mesmo ângulo. É a história de uma amizade. O último respiro dessa unidade entre Max e Matt, reverberada pelos aspectos técnicos citados acima, ocorre na gravação do curta. O meu shot favorito em toda a filmografia de Dolan, o enfoque nos dois sentados no sofá, esperando a gravação do beijo, apreensivos, cada um numa extremidade, reflete bem a agonia de um desejo que, antes adormecido, renasce com força ímpar; no entanto, a percepção desse desejo se dá pela categoria do impossível. É uma dolorosa impossibilidade porque esse desejo narcísico de ter o outro nunca se realizará, por isso machuca tanto.

Não existe uma real chance deles ficarem juntos, cada um tem a sua vida, é um outro momento, e não cabe. Max vai embora, e Matt vai se casar em breve. As cores almodovarianas, o vermelho e o azul –  que é uma referência ao cinema sublime Pedro Almodóvar, que abusou de suas cores pessoais no filme mais lindo de sua carreira Dor e Glória (2019) – se relacionam aos aspectos da personalidade de cada um. O vermelho de Matt representa o seu espírito impulsivo; o azul de Max, uma extensão do seu espírito melancólico e introvertido. Xavier Dolan brilha na montagem de seu filme.

Essa relação entre desejo e impossibilidade se abre na construção cênica do filme. Depois do beijo, tudo muda. É o ponto de virada.  Quando Matt mergulha num lago profundo e caudaloso que existe no quintal da casa de Rivette, o diretor constrói sutilmente esse momento como cena de transição. É então, no segundo ato, que o filme, além de romper e separar os dois, se concentra em fazer um estudo do sintoma a partir da causa. É a partir desse instante que o diretor canadense faz um estudo sintomático e lança a grande questão de seu filme: Como o desejo se manifesta a partir da impossibilidade? 

E então acompanhamos o desenvolvimento de uma outra dicotomia no amor dos dois amigos: Negação e Estranhamento. Dolan caminha entre categorias dicotômicas: Desejo e Impossibilidade / Negação e Estranhamento. É por aí que a mão da direção trabalha, transitando de um para o outro. 

Neste momento do segundo ato, o enquadramento muda; agora, constantemente, o que antes era o retrato de uma dupla, se torna um retrato só, ou só de Matthias, ou só de Maxime.  E eles se afastam cada vez mais. Sem conversar sobre o ocorrido, os dois amigos se estranham durante 14 dias, até o momento em que Max definitivamente vai embora.  É dolorido ver como as coisas se desmancham no mínimo detalhe.  

Instintivamente, Matt está sempre na defensiva. A negação é, senão, uma manifestação do inconsciente do sujeito que nega. E o que ele nega? uma realidade latente, que o coloca em risco. A clínica psicanalítica trabalha com a negação como forma de defesa do Ego, assim, o paciente oculta algo de muito íntimo e ameaçador. É exatamente dentro dessa noção que Matt passa a expressar, na linguagem e no corpo, os aspectos da negação, ou seja, da negação do seu desejo pelo outro. A partir disso, ocorre um estranhamento: o que deveria estar oculto veio à luz, e agora, o que subiu para a superfície, incomoda, inquieta e causa dor. A atração existe – mas seria tão melhor se não existisse. O real nem sempre corresponde às vontades individuais mais intensas, e a negação se manifesta como uma forma de defesa de um Eu, que se percebe na encruzilhada de um amor impossível. 

Na festa de despedida de Max, com todos os amigos reunidos na sexta-feira, eles se encontram novamente. Num clima tenso, e se falando pouco, Matt e Max estão afastados também no enquadramento de câmera. Eles bebem e fazem uma brincadeira de roda, e então essa interioridade impulsiva de Matt aparece. Eles discutem por conta dessa brincadeira, e um acusa o outro de trapaça e o clima fica péssimo. Essa briga é, na verdade, um pretexto para expressarem suas mágoas, e também terem algum contato, além do silêncio. 

A cena do beijo na festa é construída de modo brilhante.  A câmera, que se coloca externa à casa, no jardim,  filma um plano-sequência em câmera lenta, caminhando da direita para a esquerda, passando pela porta, pela janela da sala, pelo banheiro e, finalmente, pela lavanderia, onde Max e Matt estão, enfim, de novo, no mesmo enquadramento, mas, agora, se beijando. Enquanto isso, começa a chover lá fora e os amigos correm para salvar as roupas da chuva. A cena mais simples, e a mais sublime de todo o filme, ela constrói aquilo que Dolan tentou durante toda a montagem do seu longa: a verossimilhança – a base do seu estilo enquanto cineasta. 

Um filme que já nasce um clássico em toda a sua obra, Matthias & Maxime se torna essencial para entender o processo criativo de Dolan, sobretudo a relação entre ele, como diretor, e as temáticas trabalhadas em suas produções, que sempre se esbarram em algum ponto.

Matthias & Maxime  (Canadá, França, 2019)
Direção: Xavier Dolan
Roteiro: Xavier Dolan
Elenco: Xavier Dolan, Gabriel D’Almeida Freitas, Anne Dorval, Pier-Luc Funk, Antoine Pilon, Samuel Gauthier, Adib Alkhalidey, Catherine Brunet, Marilyn Castonguay, Micheline Bernard, Harris Dickinson.
Duração: 129 min.

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