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Crítica | Mauricio de Sousa: O Filme

A primeira cinebiografia do maior quadrinista do Brasil.

por Roberto Honorato
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Mesmo que você tenha passado sua vida inteira em uma caverna, de alguma forma ainda saberia quem é Mauricio de Sousa. Facilmente o nome mais reconhecível dos quadrinhos nacionais, há toda uma aura em volta da figura do criador de personagens que fazem parte do imaginário popular, mas não se sabe muito sobre o passado do pai de Mônica, Magali, Cebolinha e Cascão além do que é dito pelo próprio, então a decisão de criar uma cinebiografia do quadrinista é uma ótima ideia para finalmente trabalhar o mito da nona arte para além desse gênio imaculável e focar também em seu lado mais humano. Se não fosse o envolvimento do próprio na supervisão de cada detalhe da obra, talvez tivéssemos essa cinebiografia envolvente, porém o que nos resta é um longa bem produzido que parece ter saído de uma agência publicitária.

Não sou contra elogiar e muito menos prestar as merecidas homenagens à figura de Mauricio de Sousa como quadrinista. Seu impacto é inquestionável, e até mesmo afirmações generalizadas como “várias gerações aprenderam a ler com o Mauricio”, têm algum fundamento (no quesito de auxiliar, não ensinar). Afinal, muitas crianças realmente se apaixonaram pela leitura por meio de suas personagens memoráveis e das incontáveis revistas em quadrinhos que passaram pelas mãos de quase todos os brasileiros.

Ainda assim, há um problema sério nessa narrativa, que pretendo explorar nos próximos parágrafos. E sim, sei que apenas levantar essa questão pode gerar reações desproporcionais. Mas quando se escolhe retratar a imagem de alguém com o peso simbólico de Mauricio de Sousa em um filme, simplesmente repetir ideias já cristalizadas no imaginário coletivo é o mesmo que martelar um conceito até que ele perca o sentido. Não estou fazendo nenhuma afirmação categórica (e é importante deixar isso claro, considerando como opiniões divergentes, mesmo respeitosas e embasadas, podem gerar reações desproporcionais), mas nem sempre é um bom sinal quando o próprio biografado e o estúdio responsável por seu legado criativo têm liberdade total para aprovar ou vetar qualquer ideia que possa, de alguma forma, “macular” a imagem de uma figura tão querida.

É evidente a forte conexão emocional entre o personagem central do filme e seu público-alvo. No entanto, como ocorre em outras cinebiografias com esse viés mais “celebratório” de homenagem, Mauricio de Sousa: O Filme opta por retratar o biografado quase exclusivamente sob a ótica de um gênio carismático que conquistou tudo com base na força de vontade. A abordagem é tão higienizada que ignora completamente os aspectos mais controversos de sua trajetória profissional, justamente os que poderiam tornar a narrativa mais envolvente e revelar um lado mais humano desse artista que todos admiram.

Mas, como em uma peça publicitária, não há espaço para explorar as complexidades de um homem ambicioso tentando viver de quadrinhos em plena ditadura militar (contexto histórico que o filme representa com manchetes de jornal sem muito destaque). No lugar disso, temos um Mauricio reduzido a um sujeito distraído, sorridente e quase ingênuo, que supera qualquer obstáculo com carisma e ideias brilhantes, uma representação que mesmo sendo afetuosa, empobrece a profundidade da história que poderia ser contada.

Escolher Mauro de Sousa, filho do biografado, para protagonizar a história é uma decisão estratégica que, à primeira vista, parece fazer sentido, especialmente pela evidente semelhança física entre os dois, mas é mais uma dessas decisões que compromete o resultado do filme como um filme, isso porque Mauro não só é um ator que precisa restringir sua interpretação ao que foi aceito por um “comitê de qualidade”, como também tem a desvantagem de não possuir uma experiência maior com dramas cinematográficos, o que o limita a ser exatamente a figura sorridente e sem muita personalidade que mencionei anteriormente.

Por sorte, o filme conta com um elenco de apoio que consegue ser melhor aproveitado e tratado com mais humanidade, exatamente porque o filme permite que eles sejam mais idiossincráticos, do jeito que acontece com as personagens de Thati Lopes, uma atriz com uma experiência e talento únicos para a comédia, interpretando a primeira esposa de Mauricio, Marilene, e servindo como alívio cômico com várias falas engraçadas e tão bem entregues que parecem ter sido improvisadas. O mesmo acontece com Diego Laumar, o ator mirim e o craque do jogo, que interpreta Maurício nos segmentos da sua infância, dessa vez um intérprete que consegue passar a ideia de alguém carismático e sonhador sem parecer que está em um comercial de margarina.

Muito do que compromete o filme vem da direção de Pedro Vasconcelos e Rafael Salgado, que constroem a narrativa inteiramente em torno das limitações impostas pelo enredo. Essa abordagem parece ter influenciado também a estética repetitiva do longa, marcada por planos médios recorrentes usados apenas para situar os personagens, além dos inúmeros closes no rosto de Mauro de Sousa sorrindo após ter uma ideia genial, sempre surgida de forma espontânea, sem qualquer influência externa.

Esse é um dos problemas típicos dessas “cinebiografias publicitárias”, em que o protagonista é retratado como alguém que concebeu suas criações quase exclusivamente a partir de vivências pessoais, ignorando referências culturais mais amplas. É o mesmo tipo de narrativa vista no infame, porém premiado, Bohemian Rhapsody, quando Freddie Mercury acorda e, do nada, tem a ideia completa da música título, embora o processo real tenha sido muito mais complexo e colaborativo.

Aqui, vemos Mauricio tendo epifanias que brotam inteiras a partir de lembranças da infância ou do seu cotidiano como artista, como ouvir uma criança falando exatamente como o futuro Cebolinha faria ou imaginar toda a Turma do Penadinho só porque viu alguém se cobrir com um lençol e brincar de fantasma. Pode até ser verdade e não duvido que Mauricio tenha sido visionário a esse ponto, mas é ingênuo, tanto por parte do roteiro quanto do espectador, acreditar que séries como Os Monstros, A Família Addams ou os filmes de criaturas da Universal, todos populares na infância do autor, não tenham exercido nenhuma influência. O próprio início do filme já mostra como os quadrinhos e revistas pulp despertaram seu lado criativo, com Mauricio comprando edições mensais de Flash Gordon até criar seu próprio explorador espacial, o original Astronauta.

Essa abordagem adotada pelo filme acaba evidenciando seu maior problema. A narrativa caminha com extrema cautela, como se pisasse em ovos, ao tentar representar uma figura tão importante da cultura brasileira, alguém cuja imagem pública foi moldada quase exclusivamente pelo que ele próprio autoriza divulgar. O longa evita qualquer influência externa que possa comprometer a construção do “mito Mauricio de Sousa”. Nas entrevistas, a equipe reforça que respeitar a visão de Mauricio sobre sua trajetória é essencial. No entanto, quando se trata de cinema, a perspectiva que deve prevalecer é a do diretor. Escolher abrir mão dessa autonomia para agradar o biografado e confortar um público que só consegue enxergá-lo através da lente nostálgica dos personagens da infância é uma decisão que limita o potencial da obra.

Esse culto à personalidade de grandes figuras apaga aspectos relevantes da história. No caso de Mauricio, ofusca o empresário que soube gerir sua própria imagem com precisão. Em vez de abrir espaço para debates importantes, o filme opta por uma narrativa que exalta apenas seu lado criativo e visionário, ignorando pontos cruciais, como o fato de ter passado boa parte da carreira sem creditar os roteiristas e desenhistas de seu estúdio, ou suas estratégias para ampliar o alcance da Turma da Mônica mesmo durante o período mais severo de censura criativa no país. Curiosamente, em certo ponto da história o protagonista é chamado de “subversivo”, sem explicações que justifiquem esse rótulo. É mais uma das técnicas que o longa usa para desviar de possíveis suposições sobre esse gênio intocável.

Incluir esses temas na cinebiografia de uma figura pública não é difamação, é reconhecer a complexidade de sua trajetória. Há, inclusive, um aspecto mais delicado nesse culto à personalidade quando se afirma que Mauricio “ensinou o brasileiro a ler”, ignorando que os verdadeiros responsáveis por esse feito foram professores mal remunerados, frequentemente desrespeitados e até abusados em ambientes de trabalho precários. Enquanto isso, o filme evita qualquer crítica ao empreendedor, blindado por uma aura nostálgica sustentada quase exclusivamente pelos personagens que criou, sozinho ou não.

Mauricio de Sousa: O Filme – Brasil, 2025
Direção: Pedro Vasconcelos, Rafael Salgado
Roteiro: Pedro Vasconcelos, Paulo Cursino
Elenco: Mauro de Sousa, Diego Laumar, Thati Lopes, Emílio Orciollo Netto, Natalia Lage, Elizabeth Savala
Duração: 95 min.

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