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Crítica | Medida por Medida (1979)

por Luiz Santiago
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estrelas 3,5

Medida por Medida faz parte das “comédias sombrias” de Shakespeare, assim como a peça Bem Está o que Bem Acaba, que carrega as mesmas características estilísticas e textuais de sua gêmea, mantendo o riso nervoso, a possibilidade de uma grande tragédia, a morte, o desamor e algumas confusões de tom cômico – o que deu a essas obras a classificação de “comédia”, mesmo que, a rigor, não o sejam.

Ambas as peças fazem parte de um momento em que o bardo se dedicava às tragédias (Hamlet e Otelo são desse período) e talvez por isso carreguem elementos internos bem diferentes de outras comédias do dramaturgo, tais como A Comédia dos Erros, As Alegres Comadres de Windsor ou Sonho de uma Noite de Verão.

A discussão que permeia quase todo o texto de Medida por Medida é a aplicabilidade dura das leis de um Estado, mesmo quando essas leis são absurdas ou esbarram em questões morais e de comportamento cotidiano de grande parte do grupo que ela quer atingir. No presente caso, temos a lei que pretende punir a libertinagem sexual da população de Viena, local onde se ambienta a ação.

O Duque percebe que há uma grade desmedida moral por parte dos habitantes da cidade, mas não sabe como punir isso de maneira eficiente. Ele teme que sua imagem frente ao povo seja manchada e ele receba a alcunha de tirano. Por isso, resolve fazer uma viagem e, estrategicamente, escolhe Ângelo para substituí-lo. Ângelo tem fama de retidão moral e seu comportamento social está acima de qualquer suspeita. No poder, ele começar a endurecer o modo de interpretação das leis e de como as punições são aplicadas ao malfeitores. Cláudio, filho de um nobre vienense, é condenado à morte por ter engravidado uma jovem antes do casamento. Durante uma boa parte da peça temos a discussão sobre a injustiça e desmedida dessa ordem de Ângelo, cujas ações do passado o condenam muito mais do que a Cláudio, que recebe empatia da maior parte dos cidadãos de Viena.

É compreensível que a peça não tenha sido bem recebida pela corte de Jaime I quando apresentada pela primeira vez, provavelmente em 26 de dezembro de 1604. Há um teor de discussão sobre leis arbitrárias e corrupção nos meios públicos que certamente não deve ter agradado aos nobres e ao próprio rei que, representado na figura do Duque, aparece como um governante que prefere se esconder e responsabilizar terceiros por atitudes que ele deveria tomar. A falta de pulso político e o exercício da justiça estão na mira do bardo de maneira muito clara em toda a peça.

Mas a discussão é entrelaçada com relacionamentos amorosos, o que faz a qualidade da obra cair um pouco após o final do 3º Ato. Algumas intrigas se erguem nos bastidores e o Duque, disfarçado de frade, acompanha o comportamento e as opiniões das pessoas a seu respeito. É então que resolve agir em favor dos condenados e dos abandonados. Tudo termina bem ao final (exceto para Lúcio), mas não podemos dizer há plena felicidade. Ângelo, por exemplo, não parece nem um pouco feliz em ter sido obrigado a desposar uma antiga noiva, situação muito semelhante à de Bertram em Bem Está o que Bem Acaba.

A versão de Desmond Davis dá a devida atenção para os focos dramáticos da peça e conta com um bom elenco, além de ótima caracterização do espaço, algo que dissipa a estranha impressão de “teatro filmado” desse tipo de produção. As filmagens em internas possuem uma melhor representação cênica, com cores, objetos e disposição das personagens em cena, algo um pouco menos rigoroso nas externas. Mas isso não significa que esse ponto das filmagens seja algo ruim. Uma saída inteligente da direção de fotografia foi optar por planos e ângulos mais fechados, o que não tira a impressão de que a cena é externa mas ao mesmo tempo não explora em grandes panorâmicas esse ambiente, evitando tropeços de verossimilhança.

O clima de toda a adaptação é de uma tragédia vindoura, o que salienta ainda mais a falha na classificação de “comédia” dada à obra. Se o espectador não leu a peça é difícil fazê-lo crer que exista uma linha cômica no original, mesmo que bastante sutil. Desmond Davis não dá muito espaço ao riso, fixando apenas em Lúcio uma espécie de humor negro que combinou bastante com o infame personagem.

Toda essa fauna pseudo-trágica que marca a obra se encontra na reta final, quando o Duque “volta” a Viena e faz o seu julgamento. Kenneth Colley representa muito melhor como frade do que como Duque, mas mesmo assim passa um ar de autoridade bastante convincente e oposto à postura de Ângelo, maravilhosamente interpretado por Tim Pigott-Smith. Dentre as mulheres, o destaque maior vai para a atriz Kate Nelligan, que faz Isabella (e está em destaque na foto desse texto). Ela consegue usar a simplicidade a seu favor, pendendo para uma personalidade sofrida e prestes a perder o irmão mas ao mesmo tempo conformada “com o destino que Deus reservou a ele”. O interessante é que sua fé e seu noviciado são “corrompidos” ao final da peça, uma vez que ela cede aos amores do Duque e sai de cena de mãos dadas com ele.

Medida por Medida é uma peça interessante sobre o poder e as consequências de sua má aplicação por juristas e poderosos corruptos (uma espécie de crônica cínica tendo em mente “A Espada de Dâmocles”). A adaptação de Desmond Davis captura a contento os elementos centrais da obra de Shakespeare e consegue um bom resultado final, mesmo que traga os elementos negativos e as estranhezas da peça, a maior parte delas vinda dos relacionamentos amorosos no meio de uma temática política tão bem arquitetada.

Medida Por Medida (Measure for Measure) – UK, 1979
Direção: Desmond Davis
Roteiro: William Shakespeare
Elenco: Kenneth Colley, Kate Nelligan, Tim Pigott-Smith, Christopher Strauli, John McEnery, Jacqueline Pearce, Frank Middlemass, Alun Armstrong, Adrienne Corri.
Duração: 145 min.

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