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Crítica | Medium (2020)

por Michel Gutwilen
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Que forma mais assertiva (“aquilo que se afirma”) do que começar um documentário sobre uma pianista argentina de 94 anos com um longo plano, de dez minutos, no qual a mesma está tocando Brahms? É assim que o diretor Edgardo Cozarinsky apresenta Margarita Fernández, em uma perfeita escolha formal por vários motivos. Primeiro, porque a qualidade como artista da protagonista já se evidencia de imediato, antes que qualquer palavra possa ser dita sobre ela, e aquele espectador que não a conhece (o meu caso) não precisará ser convencido por depoimentos de terceiros ou uma narração em off sobre a grandeza daquela mulher, mas por seus próprios gestos. Em muitos documentários, a construção da qualidade da pessoa “observada” é gradual, mas, em Medium, ela é o ponto de partida. 

Para além das qualidades artísticas que se observam da própria apresentação inicial, há muitos outros significados a se tirar a partir de sua longa duração. Durante os dez minutos, sente-se o peso da vida, que vão se materializando conforme o tempo progride. É um plano (e uma música) que se recusa a acabar, tal como Margarita, que mesmo aos 94 anos, ainda se mostra plenamente ativa e capaz. Não há dúvidas que seu corpo, principalmente suas mãos, são cruéis marcas físicas do efeito causado pelo envelhecimento, com Cozarinsky parecendo ter total consciência disso ao enquadrar a protagonista tocando, de modo que seus atributos físicos (a mão, a curvatura de seu corpo, seu rosto cansado) sempre ficam em evidência quando toca, de modo a criar um contraste muito interessante: a mortalidade do corpo versus a imortalidade da música. 

É neste sentido que a construção narrativa de Cozarinsky parece ir, como se todo o filme fosse uma espécie de passagem de bastão. De Brahms à Margarita Fernández. De Margarita ao jovem pianista de dezessete anos que recebe conselhos dela. É como se os corpos fossem apenas um invólucro que carregam a alma (neste caso, a música), que vai sendo passada adiante, resistindo ao tempo. Talvez o momento que essa intenção de Medium fica mais clara é quando os dois jovens estão lendo sobre Brahms em uma biblioteca, dando continuidade ao legado da música. Aliás, este momento ser decupado em um plano geral, que permite com que se veja todas as cadeiras de estudo desocupadas e apenas aqueles dois jovens lendo, é uma escolha muito marcante e evidentemente política. Há uma evasão dos estudos, da leitura, do interesse juvenil em adquirir conhecimento pela arte, sendo poucos ainda que resistem a isso, o que mostra a preocupação de Cozarinsky com esse fato. 

No mesmo sentido, há sequências em que Cozarinsky ocupa o plano com o rosto dos jovens enquanto, ao fundo, em off, escuta-se Margarita tocando Brahms no piano. Ou seja, na mesma mise-en-scène, apesar de só estar materializado um corpo (o do jovem), existem mais duas presenças, a da pianista argentina e do compositor alemão, de maneira imaterial, que perduram com o tempo. É por isso que em um momento, próximo do final de Medium, aparece uma bailarina, de maneira aleatória e sem sabermos quem ela é, dançando ao som de Margarita/Brahms. Como a própria protagonista diz: “a música pode mudar a vida de quem escuta”. Não precisamos saber a identidade daquelas pessoas, pois este não é o foco da narrativa, o que importa compreender é que a música os tocou e está sendo eternizada através de seus corpos. Até por isso, não há nenhuma apresentação formal de nenhum dos outros “personagens” que aparecem além de Margarita, inclusive do próprio Cozarinsky, que só um espectador familiar ao diretor entenderá que se trata dele. Não há diferenciação pois estão todos em uma posição de igualdade: são todos apaixonados tanto pela música quanto por Margarita.

Outro elemento marcante da mise-en-scène que me chama atenção é como existe uma predileção por planos que mostram as pessoas, quando escutam música, olhando para cima ou para o lado, sempre em direção a algo “superior”, que está fora do plano, como se existisse uma sensação divina causada pela sensibilidade ao se escutar o som, sendo algo que está para além do mundo material. Por conta disso, emocionante é o plano tirado de uma imagem de arquivo, onde uma Margarita jovem escuta uma apresentação de piano, e a câmera começa a se aproximar em zoom de seu rosto, que nunca está olhando para o pianista, mas justamente para esse “além”. A impressão que dá é como se, no momento em que Brahms está sendo tocado, há em seu ouvintes uma cegueira temporária  em relação ao mundo real, para que se enxergue uma outra realidade. No fim, Cozarinsky consegue um tremendo feito: o efeito da música não só pode ser escutado, mas também observado, como Cinema. Em uma sinestesia, Medium é sobre escutar com os olhos.   

Medium (2020) — Argentina
Direção: Edgardo Cozarinsky
Roteiro: Edgardo Cozarinsky
Elenco: Margarita Fernández, Diana Szeinblum, Carolina Basaldúa, Federico Gianera, Eduardo Stupía Francisco, Ledda, Valentin Basaldúa, Eugenio Monjeau
Duração: 72 mins.

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