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Crítica | O Medo do Medo

por Luiz Santiago
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Um dos elementos mais interessantes da filmografia de R.W. Fassbinder em termos de construção de personagens é como o diretor foi alterando e problematizando o papel da mulher ao longo dos anos, atribuindo-lhes todo tipo de comportamento, ações de vingança, submissão, covardia, medo, coragem e poder.

Em mais um excelente trabalho em parceria com a atriz Margit Carstensen, o diretor cria no telefilme Medo do Medo (1975) um estudo melodramático da opressão “invisível” sobre a mulher, que, ao longo da trama, ganha tons alegóricos não só a partir da protagonista mas também das outras mulheres que fazem parte desse estranho universo: a sogra, a cunhada e a filha de Margot, a perturbada e aflita personagem de Carstensen.

Baseado nas memórias de Asta Scheib, o telefilme coloca em cena o núcleo familiar em crise dentro de uma perspectiva plenamente existencial. Diferente da força física e/ou psicológica sobre a mulher que o diretor nos havia mostrado em Martha (1974) ou Amor e Preconceito (1974), Medo do Medo olha para dentro da personagem, recolhendo aqui e ali migalhas dramáticas ou ‘possíveis motivos’ para a depressão que ela sofre.

Quando me referi, mais acima, à opressão “invisível” sobre a mulher, é justamente a este ponto existencial que eu me referia. O marido de Margot não a espanca ou a obriga a fazer nada. O seu ambiente doméstico é aparentemente pacífico, tendo apenas alguns conflitos com a sogra e a cunhada, mas só. Ora, de onde vem a opressão da personagem, então?

Através da trilha sonora de Peer Raben começamos a ter as primeiras pistas. Fassbinder alia a música a uma leve ondulação na tela, sinalizando os pontos de ataque de pânico da personagem principal. É a nossa chave para temer pelo que vem a seguir, um temor que vai ficando cada vez mais crítico e mais estranho à medida que descobrimos o mundo de Margot, com direito a um misterioso stalker interpretado por Kurt Raab; um filho que desencadeia a depressão pós-parto da protagonista e lapsos temporais marcados por fades, um recurso de montagem que à primeira vista pode parecer comum demais mas que demarca o território de percepção de Margot, uma das chaves para compreendermos o seu ponto de vista das coisas.

A histeria, angústia e aflição da personagem se aliam a um pequeno mistério de conteúdo, seja de ordem externa (o casamento, a maternidade, a família, o caso extraconjugal, um possível segredo representado pelo vizinho stalker…) ou interna (os mais diversos meandros da psicologia humana). O espectador nunca sabe a verdade e o roteiro de Fassbinder se recusa a dar uma resposta definitiva. Ao final do filme, percebemos que o medo ainda está lá, a despeito de todas as tentativas da parte do esposo para que a protagonista se recupere. Possivelmente como forma de suprir o seu afastamento e silêncio no período em que se dedicava unicamente aos estudos, ele acaba cumprindo um papel de submissão à situação em que a esposa se encontra, sendo uma vítima por tabela dos efeitos da condição da mulher.

Espalhados pelo cenário bastante iluminado vemos um bom número de espelhos, janelas e escadas que completam o ciclo simbólico em torno de Margot. A ideia do duplo, de fuga, da salvação ou opressão definidas pelos planos da câmera e pela forma como a personagem é mostrada ao longo da película é delineada a partir desses ingredientes cênicos, cujo toque final são as constantes trocas de figurino como identidade e a mudança do cabelo ou maquiagem da personagem. É como se ela estivesse em contante mudança enquanto o seu entorno permanecesse o mesmo, especialmente a sua “cópia” biológica, Bibi, que entre a confusão e a inocência, acaba servido de âncora para a mãe.

As sementes de O Desespero de Veronika Voss são plantadas aqui em Medo do Medo. A dependência do álcool ou drogas, a “invisível” opressão externa (com possível causa política, mas isso é uma alusão do enredo que vai depender da interpretação de cada espectador para existir ou não) e a luta da mulher contra sua essência, seus fantasmas e medos – na tentativa de se enquadrar entre os “normais” – alcança um ponto que até então não se tinha mostrado com tamanha intensidade e múltiplos tons cinematográficos (drama, melodrama, realismo, expressionismo) em um longa de Fassbinder. E junto com a personagem principal, o espectador também é levado, de maneira calma e traiçoeira, ao caminho da confusão, da dúvida e do medo de ter medo, um estágio que na verdade não é o fim, apenas uma pausa desesperada até que outra luta contra a mesma causa se [re]inicie.

O Medo do Medo (Angst vor der Angst) – Alemanha Ocidental, 1975
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder (baseado nas memórias e anotações de Asta Scheib).
Elenco: Margit Carstensen, Ulrich Faulhaber, Brigitte Mira, Irm Hermann, Armin Meier, Adrian Hoven, Kurt Raab, Ingrid Caven, Lilo Pempeit, Helga Märthesheimer
Duração: 88 min.

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