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Crítica | Medo e Delírio (1998)

por Gabriel Carvalho
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“Lá vai ele. Um dos protótipos pessoais de Deus. Uma espécie de mutante de alta potência que nunca foi considerado para fabricação em massa. Muito estranho para viver e muito raro para morrer.”

Hunter S. Thompson, autor de Medo e Delírio em Las Vegas – a última parte do nome acabou sendo retirada no lançamento brasileiro da adaptação cinematográfica homônima -, encapsulou em uma única frase sobre o que era a sua obra quando a resumiu com o seguinte subtítulo: uma jornada selvagem ao coração do sonho americano. O cineasta responsável por essa interpretação da sua literatura, mas em formato de cinema, não poderia ser outro senão Terry Gilliam, icônico integrante do ainda mais icônico grupo de comédia Monty Python, posteriormente responsável por Brazil – O Filme, aclamadíssima ficção-científica que possui uma conclusão climática que o comediante, agora, reinstala na sua carreira, porém, desenvolvendo-a como substância integral do seu projeto, acordado com a essência da fonte, imensamente lisérgica e desentendida com regras. Medo e Delírio é, ironicamente, um delirante e amedrontador relato da depravação americana, de um sonho que, na verdade, pensa no agora, nos prazeres momentâneos, ao invés de enxergar qualquer premissa a grande distância, qualquer construção ou ambição. A ode a selvageria, ao irracional em sua glória, é a única constante de toda essa alucinação psicodélica, que acaba sendo, enfim, entristecida, demasiadamente saudosa a uma geração fadada ao fracasso.

O que os protagonistas do longa-metragem, interpretados por Johnny Depp e Benicio Del Toro, estão realmente almejando, além do consumo de drogas indiscriminado? O roteiro, assinado por três pessoas, adapta as escritas quase auto-biográficas de Hunter S. Thompson, em meio a um movimento sócio-cultural a beira do seu suicídio, transformado no seu próprio não significado. A contracultura, mesmo com os pesares, acreditava na esperança, acreditava em mudança. A contracultura acreditava. O sonho, porém, estaria para morrer, assim como personalidades importantes desse movimento, assassinadas. Os personagens desse produto do lisérgico, situado no início da década de setenta, são apenas motores dessa desordem completa, nem pessimismo e nem o otimismo, muito menos qualquer significado ou discurso sobre liberdade, sobre princípios. Medo e Delírio é um antítese a Sem Destino. As situações vividas pelos anti-heróis movimentam-se sem qualquer ordem, sem qualquer coesão, caso seja coeso estabelecer o caótico parcialmente onírico e parcialmente assombroso como constante de alguma coisa. A premissa inicial, a cobertura de um evento automobilístico, não importa, sendo até mesmo “solucionada” no meio dos acontecimentos indescritíveis que acontecem no decorrer desse conto embriagado.

Medo e Delírio acaba sendo um produto de uma nota só basicamente, mas que não é menos profundo ou parcialmente genial por entender para si mesmo uma única estética, dada a montagem confusa, os diálogos extremamente aleatórios e as interpretações atacadas – Johnny Depp em uma versão ainda mais estragada que o alcoólatra Jack Sparrow, de A Maldição do Pérola Negra. Um projeto que pode ser tanto extremamente incômodo quanto enormemente divertido – uma experiência ainda mais particular para os interessados nas substâncias consumidas por esses personagens, sucedendo uma possível exibição de Alice no País das Maravilhas, a animação da década de cinquenta, ainda mais psicodélica que Medo e Delírio. Um cansaço inexorável frente a obra, contudo, é oriundo da consideravelmente extensa duração do longa-metragem, em vista de ser um projeto com uma proposta simples, ansiando comportar momentos díspares demais para justificar-se em sua ideia despirocada do que é essa contracultura que nem mais sabe o que quer ser. As sequências menos inventivas, ao mesmo tempo, partem para uma contemplação infinita que poderia ser conciliada com situações mais marcantes, contendo um maior apreço pelo fantástico, como o ataque de morcegos e a orgia dos répteis.

O personagem interpretado por Tobey Maguire, um andarilho daquela época, por exemplo, incorpora a juventude ingênua, que se assusta quando enxerga o despropositamento daqueles dois drogados, um jornalista e um advogado, ambos dirigindo um carro em direção ao coração do hedonismo interminável, justamente a famigerada cidade de Las Vegas. A direção de arte, em termos de compor cenários que englobam essa podridão cênica, é certeira, devido a imundície interminável que é adotada em espaços menores, como os quartos. Os personagens não acreditam em mais nada, não vivem por mais nada, sem ideais ou virtudes. O sonho acabou, mas Raoul Duke e Dr. Gonzo não se preocupam nem em repensá-lo, apenas em desperdiçar o restante de suas vitalidades em uma jornada regada a drogas, uma trajetória que assim permanece do início ao fim de Medo e Delírio. Um filme que não possui causas ou consequências – a vida como anti-narrativa, se auto-destruindo. As montagens dos nossos passos, aqui, são confusas e exóticas demais para possibilitarem um pensamento coeso. O jornalismo torna-se momentaneamente uma extensa divagação que assassinou a objetividade. O sonho americano é o que agora, senão insensato? Um filme estranho demais para existir, mas raro demais para ser ignorado.

Medo e Delírio (Fear and Loathing in Las Vegas) – EUA, 1998
Direção: Terry Gilliam
Roteiro: Terry Gilliam, Tony Grisoni, Alex Cox, Tod Davies (inspirado no livro homônimo de Hunter S. Thompson)
Elenco: Johnny Depp, Benicio Del Toro, Tobey Maguire, Larry Cedar, Michael Lee Gogin, Brian Le Baron, Katherine Helmond, Michael Warwick, Craig Bierko
Duração: 118 min.

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