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Crítica | Medo e Desejo

por Luiz Santiago
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estrelas 3

Considerando a megalomania de Stanley Kubrick por detalhes e perfeição em seus filmes, é de se entender o por quê ele resolveu retirar de circulação as cópias de seu primeiro longa-metragem, Medo e Desejo, de 1953. O filme foi financiado pelo próprio diretor — obrigado a deixar o seu emprego de fotógrafo e utilizar suas economias pessoais para isso — e por um tio seu. O resultado não é ruim, e isso foi percebido por alguns críticos de Nova York, à época, que chegaram a elogiar a película e apontar o seu diretor como um talento promissor para o cinema. A despeito disso, Kubrick julgava a obra amadora demais e então comprou o maior número de unidades que pode, o que fez o longa ficar fora de circulação durante muito tempo, tornando-o objeto de desejo de muitos cinéfilos ao longo dos anos.

Mas o que há de tão amador em Medo e Desjo? Visualmente falando, quase nada. Já em neste primeiro longa (é importante ressaltar que o diretor havia dirigido, até então, três documentários em curta-metragem, a saber, O Dia da Luta, O Padre Voador e The Seafarers), Kubrick mostrava excelente domínio de câmera e maravilhosa concepção fotográfica, cargo que ele também ocupa no filme, além da direção e da montagem. Suas referências dramáticas, especialmente na parte final da fita, são belas e minuciosamente planejadas. Em um momento ou outro, após o plano de abertura, percebemos mais fortemente a inexperiência do elenco e um ou outro plano ou elemento cênico destoante, mas de resto, trata-se de uma obra muito bem dirigida e visualmente concebida.

Talvez o diretor tivesse em mente as dificuldades de produção do filme, e isso pode ter gerado a sua opinião negativa sobre a obra. Diz-se, por exemplo, que a sequência em que vemos o nevoeiro na região próxima ao rio foi um complicado dia de trabalho para a equipe, porque a névoa era produzida por pulverizadores de culturas agrícolas e ainda continham inseticida, ou seja, Kubrick chegou perto de asfixiar os atores durante as filmagens.

O roteiro do filme é assinado por um amigo de Kubrick, Howard Sackler, vencedor do Pulitzer de 1969 por sua peça A Grande Esperança Branca (filmada por Martin Ritt em 1970). O escritor também assinaria o texto de A Morte Passou por Perto (1955), o segundo longa de Kubrick.

Sackler realiza um trabalho existencialista e até lírico no modo como questiona e explora a guerra, os sentimentos dos soldados e a origem da loucura. Seu texto é um misto de diálogos e pensamentos, mas em nenhum dos dois formatos de expressão temos uma verdadeira história clássica sendo contada. Ele cria um conflito a partir de elementos imediatos, principiando com uma exposição interessantíssima dos soldados em seu ambiente, trecho que faço questão de reproduzir aqui, para melhor entendimento do leitor no que se refere ao impacto e aos simbolismos do texto.

Há uma guerra nesta floresta. Não uma guerra que já tenha acabado ou uma que ainda virá; é apenas uma guerra qualquer. E os inimigos que nela combatem não existem, a menos que acreditemos neles. Por isso, essa floresta e tudo o que nela acontece não faz parte a História. Apenas as formas imutáveis do medo, da dúvida e da morte pertencem ao nosso mundo. […]

Essa característica do homem em seu meio e o cumprimento de seu dever social (no caso, o dever para com a pátria, já que os personagens são soldados) é um elemento presente em todo o filme. Mas alguns conflitos morais e éticos são adicionados no decorrer da projeção, o que problematiza essa simples exposição do soldado. Esses elementos são tão importantes para a atmosfera do filme que as cenas em que se destacam receberam as melhores concepções fotográficas, de montagem e direção de Kubrick.

SPOILERS!

A primeira cena é a que três jovens soldados são mortos em uma casa no meio da floresta. Tudo nessa sequência é (estranhamente) belo e composto por elementos estéticos e dramáticos das mais diversas ordens: o jantar que lembra a comida materna, a violenta morte de um soldado e a exposição da dor através de uma batata sendo esmagada por sua mão e o jovem que morre ao entrar na casa carregando toras de lenha nos braços. A segunda cena é a que um General e um Tenente são mortos. A iluminação do interior da casa em que vemos a chegada do cão e a conversa quase existencial entre os militares lembra muito uma iluminação noir e toda a plasticidade em torno dela impressiona bastante. A noite, a alternância de primeiros planos e planos gerais em espaços cênicos diferentes (a casa e o campo em torno dela), três ações acontecendo ao mesmo tempo, o patético fim. Para mim esses são os melhores momentos do filme.

Mesmo que haja alguns blocos pouco interessantes e o término do filme não esteja à altura do que foi construído em seu desenvolvimento, Medo e Desejo é uma obra da qual Kubrick se envergonhava sem razão. O filme é bem dirigido e sua concepção visual é de fazer inveja a realizadores que já tiveram muito mais recursos em mãos e entregaram muito menos. Trata-se de um longa de guerra incomum, quase uma reflexão sobre a atitude, a alma e o dever do soldado nesses tempos, um tipo de abordagem ao ambiente bélico não muito comum no cinema, mesmo nos dias de hoje.

Medo e Desejo (Fear and Desire, EUA, 1953)
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Howard Sackler
Elenco: Frank Silvera, Kenneth Harp, Paul Mazursky, Stephen Coit, Virginia Leith, David Allen
Duração: 62 minutos

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