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Crítica | Memórias de um Assassino

por Ritter Fan
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Há uma razão por que as pessoas dizem que eu tenho olhos de xamã.

O amadurecimento cinematográfico de Bong Joon Ho foi meteórico. Iniciando seu trabalho de direção de longas com o já muito bom Cão Que Ladra Não Morde, o cineasta alcançou impressionante nível de excelência apenas três anos depois, com seu trabalho seguinte, um drama policial perturbador que romanceia o caso real de um estuprador e assassino em série da segunda metade dos anos 80 na Coréia do Sul a partir da peça teatral homônima escrita por Kim Kwang-rim. Se seu primeiro filme tinha um tom abertamente cômico, apesar da premissa exótica e que exige mais do espectador do que apenas passividade, em Memórias de um Assassino (não sei como ficaria a tradução do título original coreano, mas o americano – “Memórias de Assassinato” – é bem mais elegante) o diretor muda completamente o tom e trabalha uma questão séria e pesada.

Bong Joon Ho, porém, não perde a veia cômica, ainda que, aqui, ela seja discreta diante da solenidade do assunto e basicamente utilizada para demonstrar a barbaridade dos “métodos investigativos” dos detetives Park Doo-man (Song Kang-ho) e Cho Yong-koo (Kim Roe-ha) que basicamente se resumem a bolar as teorias mais idiotas possíveis que são alimentadas aos suspeitos na base de violência policial para arrancar confissões. E o tipo de comicidade é o mesmo de sua obra anterior, inquieta, incômoda, que envergonha o espectador por achar graça daquilo, especialmente quando o suspeito é Baek Kwang-ho (Park No-shik), um rapaz com problemas mentais. E tudo só fica pior quando, logo no começo da fita, o chefe de polícia comemora a chegada do detetive Seo Tae-yoon (Kim Sang-kyung), vindo especialmente de Seul para ajudar nas investigações e que não só tem uma postura sisuda de “policial da capital”, como também se utiliza de métodos investigativos que pelo menos inicialmente parecem seguir o manual de instruções. A oposição do recém-chegado aos dois detetives provincianos cria uma chaga procedimental enorme que o roteiro co-escrito pelo diretor com Sung-bo Shim mantém aberta ao dividir a narrativa nos dois enfoques, de certa forma criando uma atmosfera competitiva.

Falando em atmosfera, a fotografia de Kim Hyung-ku é um dos grandes triunfos da obra, com um trabalho minucioso de captura de imagens em escuridão quase total e chuva, que Bong Joon Ho, também com a ajuda da perfeitamente sincronizada trilha sonora do compositor japonês Tarô Iwashiro, usa com enorme esmero para criar um ambiente de opressão, de completa ausência de saída, com especial destaque para os angustiantes minutos finais. Muitos equalizam essa abordagem com os filmes noir de outrora, classificando Memórias de um Assassino com neo-noir, mas não sei se a obra realmente se encaixa no conceito para além do policial durão que chega de cidade grande para solucionar terríveis crimes. Há uma qualidade muito própria no resultado final que, diria, se assemelha muito mais a Seven: Os Sete Pecados Capitais (curiosamente o segundo longa de outro grande cineasta que amadureceu muito rapidamente) do que, por exemplo, Relíquia Macabra ou Blade Runner. Mesmo assim, as comparações com Seven talvez também não sejam as melhores, pois o citado ar cômico que toma principalmente o primeiro terço da projeção e que conta com uma paleta de cores viva e muito diferente, afasta o filme do espetacular thriller de David Fincher.

Mas Memórias de um Assassino é ainda mais interessante se pararmos para pensar em seu subtexto sócio-político. Assim como no Brasil, a Coréia do Sul, em 1986, passava por um processo de fim de ditadura militar e de democratização de suas instituições, algo que em uma análise perfunctória pode parecer não se conectar à trama detetivesca. No entanto, a inquietude da população civil é um importante pano de fundo para a narrativa, mas que fica somente ali, como comentário indireto ao que acontece em primeiro plano. O espectador mais atento notará justificativas dentro do roteiro para a ausência de uma forma policial maior no local dos assassinatos que se conectam diretamente com protestos pela nação e certamente estabelecerá uma ponte direta da violência que é a mera existência de uma ditadura com a violência policial representada pelos detetives provincianos. Mas como em basicamente toda sua filmografia, Bong Joon Ho não é um cineasta de maniqueísmos óbvios e o desenvolvimento narrativo de Seo Tae-yoon, o detetive citadino que pode ser visto como a “chegada da civilização”, derruba essa nossa impressão inicial.

A duração teoricamente avantajada para uma trama detetivesca que não carrega tanta complexidade é apenas uma possível impressão inicial sem a conferência do filme, pois a narrativa, apesar de longe – bem longe! – de ser composta de sequências de ação prende a atenção do começo ao fim, fazendo a minutagem correr vertiginosamente sem que percebamos. Isso é particularmente interessante, pois a atmosfera leve (dentro do possível) que marca o começo do filme, vai sendo substituída por uma pegada sombria crescente, mas que é tão natural e tão bem costurada que se torna imperceptível. Além disso, para criar uma atmosfera capaz de visualmente estabelecer claustrofobia apesar de diversas tomadas em plano aberto, é necessário tempo e é necessário cadência narrativa. E o filme tem isso de sobra, algo que o elenco encabeçado pelo excelente Song Kang-ho tira o máximo proveito.

Memórias de um Assassino é, sem ficar pisando em ovos, uma obra-prima, algo que poucos cineastas de começo de carreira podem dizer que têm, colocando Bong Joon Ho em companhia de grandes nomes da Sétima Arte como o próprio Fincher, Jean-Luc Godard e Orson Welles nesse quesito. Nada mal para para alguém com apenas 34 anos à época em um país de cultura cinematográfica então ainda razoavelmente incipiente.  

Memórias de um Assassino (Salinui Chueok – Coréia do Sul, 2003)
Direção: Bong Joon Ho
Roteiro: Bong Joon Ho, Sung-bo Shim (baseado em peça de Kwang-rim Kim, por sua vez baseada em fatos reais)
Elenco: Kang-ho Song, Sang-kyung Kim, Roe-ha Kim, Jae-ho Song, Hee-Bong Byun, Seo-hie Ko, Tae-ho Ryu, No-shik Park, Hae-il Park, Mi-seon Jeon, Young-hwa Seo, Woo Go-na, Ok-joo Lee, Jong-ryol Choi
Duração: 131 min.

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