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Crítica | Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida

por Luiz Santiago
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Baía de Todos os Santos, 22 de janeiro de 1808. Nesta data, começava o “tempo do rei“. Como consequência final do Bloqueio Continental imposto por Napoleão Bonaparte em 1806, além de inúmeras dificuldades que esse bloqueio trouxe para um já problemático Reino de Portugal; além da aproximação cada vez maior do Exército francês, a Família Real portuguesa resolveu fugir desesperadamente transferir estrategicamente a Corte para a sua colônia, o Brasil, onde permaneceria por 13 anos. O rei, no caso, era D. João VI, apelidado de O Clemente. E é neste seu tempo de permanência no Brasil que o narrador de Memórias de um Sargento de Milícias estabelece a sua história, começando, como já se disse: “Era no tempo do rei“.

Em formato de folhetim, Sargento de Milícias foi publicado no Correio Mercantil do Rio de Janeiro entre 1852 e 1853, tendo a versão da obra completa chegado ao público no ano seguinte. Único romance de Manuel Antônio de Almeida (médico formado que nunca exerceu a profissão, mas fez carreira no jornalismo, tendo morrido aos 30 anos, às vésperas de iniciar sua carreira política), a obra é um elefante branco dentro do Romantismo no Brasil, pois apresenta, com muita força, uma série de características que viriam a ser do Realismo, o que faz do livro, acima de tudo, uma obra com que o leitor consegue facilmente se identificar e, acima de tudo, um livro inesperadamente muito divertido.

Quem vê o título “Memórias de um Sargento de Milícias” e sabe que se trata de um clássico de nossa literatura, publicado em 1854, é bem possível que torça o nariz. Ocorre, porém, que qualquer contrariedade prévia em relação à obra é mesmo um pré-conceito que faz o leitor pagar a língua tão logo passe as primeiras páginas. Aqui, conhecemos a história da vida de Leonardo, filho de Leonardo-Pataca e de Maria da Hortaliça, que se conheceram no navio vindo de Portugal, tendo o laço entre os pombinhos começado com um pisão dele no pé dela e de um beliscão de vingança dela, nele. A princípio, nos intriga como será feita a relação do título do livro com o protagonista, mas a maneira adotada pelo autor para contar essas memórias é das mais simples, com características jornalísticas e eficientes, fazendo-nos entender a trajetória do futuro miliciano desde a sua mais impossivelmente endiabrada infância até a sua mais vadia e niilista vida adulta.

Embora o livro receba algumas pedradas por não criar um arco de desenvolvimento íntimo dos personagens, esse tal “patamar raso” que os indivíduos do livro ocupam não é nada ruim. Tenho mais problemas com certas repetições do autor e com os últimos parágrafos abruptos do que com os personagens.

Por se tratar de uma obra narrada ironicamente e com diversas piscadelas e falas diretas ao leitor; por mostrar basicamente a classe baixa e um tanto da classe média de uma parte do Rio de Janeiro “no tempo do rei” e por trazer um contraste confessional primoroso do narrador, comparando o insosso tempo dele com o longínquo tempo em que tudo aquilo se passou, todas essas personas acabam sendo vitoriosamente elevadas a alegorias que conseguimos identificar até hoje na sociedade brasileira. Particularmente não tenho problemas com personagens estáticos, desde que estejam em um contexto onde esse status faça algum sentido ou caiba de maneira aceitável. Este é o caso.

Nesse romance urbano entre o Leonardo pai e as mulheres que farão parte de sua vida, temos contato com indivíduos muito marcantes e que ainda parecem viver em ruas de cidades menores ou em alguns andares de condomínios de nossos dias. Constroem esse tapete de personalidades nacionais a Comadre (uma senhora religiosa e fofoqueira), a D. Maria (senhora endinheirada e influenciadora que adora falar da vida dos outros e, principalmente, processar a tudo e a todos, por qualquer motivo), a Luisinha (representação geral do primeiro amor), o José Manuel (mentiroso contumaz e aproveitador), o Major Vidigal (temida e odiada figura da lei…) e mais uns tantos personagens típicos do final do Brasil Colônia e início do Brasil Império fazem o seu desfile na história, assim como os bairros da periferia, os ciganos, escravos, as arruaças e cantorias até a madrugada, as muitas festas religiosas — cristãs e de matriz africana –, a relação do povo com a igreja, com a educação e a autoridade oficial e oficiosa da então capital do Brasil.

Do oficial de justiça que parece ter nascido fadado ao sofrimento amoroso até a real maturidade de Leonardinho, abandonado por pai e mãe, tendo trauma de um colossal pontapé paterno que recebeu na infância e criado por um padrinho permissivo e babão, vemos surgir a verdadeira figura do malandro brasileiro, um vagabundo que a tudo desrespeita e que tem ao seu redor circunstâncias atenuantes para cada um dos incontáveis erros e quebras de lei que comete, tais como “nasceu num dia ruim“, “tem má sorte“, “não quis dizer/fazer exatamente isso“, “foi brincadeira“, “foi sem querer“…

Memórias de um Sargento de Milícias realiza uma incrível arquelogia do nosso famoso “jeitinho“, daquele “o que é a lei se eu tenho fulano por perto?“, ou do “contatinho” que pode livrar criminosos de enrascadas e colocar incompetentes em altos cargos apenas por um capricho íntimo, favores a conhecidos ou interesses financeiros. Uma divertida e indispensável obra sobre alguns matizes do lado sacana de nossa identidade nacional.

Memórias de um Sargento de Milícias (Brasil, 1854)
Autor: Manuel Antônio de Almeida
Editora: Panda Books, março de 2015
264 páginas

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