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Crítica | Meninos de Tóquio

por Luiz Santiago
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Algumas boas surpresas nos aguardam na sessão de Meninos de Tóquio (1932), filme que em 1959 seria revisado pelo próprio Yasujiro Ozu, trocando o ponto dramático em cena e dando origem ao excelente Bom Dia. Já neste início dos anos 1930 — mais precisamente a partir de Coral de Tóquio — vemos o cineasta refinando a sua assinatura e fixando uma aparência mais contemplativa para seus filmes, cabendo aí os ingredientes amplamente conhecidos de sua identidade cinematográfica, como câmera baixa, temas sociais envolvendo famílias e o conflito de gerações, destaque para takes de utensílios domésticos sem mais ninguém no quadro, chaminés ou qualquer representação de fumaça, dias ensolarados e trens… Tudo isso se vê aqui em um enredo que mais uma vez mostra distinções entre classes sociais, com a diferença de que o ponto de vista aqui é o das crianças.

Em uma das raras entrevistas em que falou sobre o filme para a Kinema Junpo, em 1958, Ozu resumiu com precisão o sentimento que o espectador tem em relação à obra: “Eu comecei fazendo um filme sobre crianças e terminei com um filme sobre adultos“. Isso também vale para a percepção de gênero cinematográfico em que o longa se encaixa, porque há uma imensa leveza (quase keatoniana) na comédia que nos apresenta aos irmãos Keiji (Tomio Aoki) e Ryoichi (Hideo Sugarawa), recém-mudados para uma casa no subúrbio de Tóquio; e o que teremos em destaque na segunda metade da obra. Nesse primeiro momento, enxergamos o filme como mais uma comédia estudantil de Ozu, que depois de filmes como Dias de Juventude, Formei-me, Mas…Fui Reprovado, Mas… sabia muito bem como guiar um filme nesse cenário, mesmo que com uma faixa etária menor.

Aos poucos, porém, o roteiro de FushimiIbushiya (baseado em uma história de Ozu) vai reconfigurando a primeira impressão dada ao público, primeiro, explorando de maneira realista a relação entre as crianças em idade escolar que sofrem ou cometem bullying, e depois, tirando o peso dessa colocação, tornando o relacionamento dos pequenos como uma esperada rusga entre novatos e antigos moradores de um local, ao mesmo tempo em que a presença dos pais se torna forte e os dilemas adultos chegam ao patamar de destaque na película. Para isso, o texto utilizou o sistema de “acompanhamento do cotidiano”, mas ao contrário de alguns exemplos estéreis que temos nessa seara cinematográfica, Ozu soube muito bem o que colocar na tela para puxar um acontecimento seguinte, tudo escolhido com precisão e posto no momento certo da rotina dos personagens, a ponto de nos ajudar a construir a personalidade de cada um deles. E o melhor de tudo isso é que não há uma repetição exagerada. Cada ação individual aparece duas ou três vezes e logo são substituídas por outras, indicando um maior envolvimento das crianças com os colegas do bairro e da escola.

É aí que percebemos que a leveza inicial do texto ganha uma sombra de realidade, um pouco em contraste com o cotidiano cada vez mais “enturmado” dos irmãos. E não é como se estivéssemos falando de problemas financeiros, na linha do que o diretor mostrou em A Mulher Daquela Noite ou no já citado Coral de Tóquio. O “choque de realidade” ou, para usar um dos muitos termos sociológicos possíveis, a noção de “consciência de classe” das crianças ganha ares morais na fita, e Ozu se aproveita dessa situação para explorar a personalidade da família e as relações sociais, especialmente entre as crianças. Se antes era possível ver um tratamento visual diferente para as duas gerações, agora a câmera coloca todos no mesmo patamar. Os plongées e contra-plongées praticamente desaparecem e vemos um maior número de cenas com a câmera no tablado, deixando pais e filhos no mesmo nível, olhando através de quadros dentro de quadros o lugar de insatisfação e impotência de cada geração (a estrutura das casas japonesas tradicionais permite, por excelência, esse tipo de montagem interna, algo que Ozu sempre gostou e que também faria disso uma marca).

No final do filme, o diretor poderia fazer com que mais aspectos da família protagonista andassem paralelamente com outros ao seu redor, não isolando o comportamento das crianças diante da “condição de empregado” do pai. Mas são poucas cenas em que isso se mantém e já nos últimos momentos voltamos à interação social e a um pouco de redenção moralista (embora esse termos pareça forte demais neste caso) para os filhos, que passam a ver a profissão do pai de uma outra forma. O ponto positivo é que essa mudança é aceitável, uma vez que não está posta com grande alarde e nem é isolada ou gratuita: o diretor só fez com que víssemos uma cena já observada no cotidiano da família sob um outro olhar. Um olhar tipicamente infantil, com uma grande doçura, mesmo para algo que, na vivência dos adultos, seja intimamente amargo…

Meninos de Tóquio (Otona no miru ehon – Umarete wa mita keredo) — Japão, 1932
Direção: Yasujiro Ozu
Roteiro: Akira Fushimi, Geibei Ibushiya (baseado em ideia de Yasujiro Ozu)
Elenco: Tatsuo Saitô, Tomio Aoki, Mitsuko Yoshikawa, Hideo Sugawara, Takeshi Sakamoto, Teruyo Hayami, Seiichi Katô, Shôichi Kofujita, Seiji Nishimura, Zentaro Iijima, Shôtarô Fujimatsu, Masao Hayama, Michio Sato, Kuniyasu Hayashi, Akio Nomura, Teruaki Ishiwatari, Chishû Ryû
Duração: 100 min.

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