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Crítica | Mera Coincidência

por Leonardo Campos
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Onde há dinheiro e poder há corrupção? De acordo com a ficção e a realidade, a resposta é um gritante sim. Infelizmente, a corrupção, que, cada vez mais tem prejudicado interesses comunitários em prol de realizações individuais ou de pequenos grupos, não contamina apenas o mundo ficcional, tais como as instigantes peças de Shakespeare, as séries de TV que seguem os estilos de Revenge e Damages ou as produções cinematográficas desta seleção crítica, bastante elucidativas quando o assunto é o universo sujo da corrupção.

Em Mera Coincidência, a apenas alguns dias da próxima eleição para presidência dos Estados Unidos, um dos candidatos, o atual presidente, encontra-se envolvido em um escândalo sexual que praticamente despeja no bueiro as suas chances de reeleição. Diante dos problemas, os seus assessores de imprensa buscam alternativas midiáticas que desviem as atenções do público para os acontecimentos reveladores que se estabelecem.

Um dos membros da equipe, o especialista em crise Conrad (Robert De Niro), procura um famoso produtor hollywoodiano, Stanley (Dustin Hoffman), para criação de algo que dê conta deste projeto de desvio do olhar público: em comum acordo, depois de muitos debates, todos decidem que será criada uma guerra na Albânia, para que o presidente possa intervir e resolver. Criada em estúdio, algumas cenas serão televisionadas como verdade, num espetáculo digno de filme de drama e ação.

O escândalo sexual que precisa ser maquiado envolve uma adolescente, supostamente assediada durante um evento. Depois que a CIA entra para atrapalhar o andamento da campanha, os envolvidos resolvem criar um plano B: incluir um herói na história. Um soldado que ficou para trás, considerado prisioneiro de guerra, alguém que na verdade nunca existiu, mas que aparecerá como um bom representante da sociedade do espetáculo. Cheio de qualidades humanas e aspectos heroicos, o rapaz ganha apelido, jingle e os resultados surgem logo, manipulando mais uma vez a população e afastando a polêmica que se reaproximava do presidente.

Logo mais, algumas trapalhadas acontecem e o herói tem a sua vida ceifada. Os produtores ficam tranquilos, porque o presidente já se reelegeu. Outro problema, entretanto, se estabelece: Stanley começa a cobrar por seus créditos por conta do sucesso da campanha, contudo, sendo o produto um material realizado para mascarar um problema ético e político, como fornecer o que o realizador tanto desejava? Dinheiro não parece resolver a questão e os assessores da presidência arrumam uma maneira de calar o reclamante.

Dessa maneira, ao longo dos 97 minutos, o cineasta Barry Levinson dirige o roteiro de David Mamet e Hilary Henkin, material literário que concorreu ao Oscar e Globo de Ouro de Melhor Roteiro de 1997. Filmado em 29 dias, a produção conta com diálogos frenéticos e pessoas que não param de falar, contemplados graciosamente pela edição eficiente de Stu Linder, num filme em que os realizadores nos ofertam um divertido olhar para o nosso estado atual enquanto cidadãos: constantemente mergulhados nas incertezas das questões políticas que regem a sociedade, representadas através desta fusão de Cinema, Jornalismo e Publicidade. Destaque também para o figurino de Rita Ryack e a direção de arte de Mark Worthington, ambos igualmente eficientes. Tais segmentos são muito importantes, porque, entre os principais personagens, temos um velho músico, uma especialista em moda e um publicitário cheio de artimanhas.

Adaptação do romance American Hero, de Larry Blindhart, Mera Coincidência trata de um dos mais comuns temas do campo da comunicação contemporânea: o acontecimento fabricado. O assunto é habilmente tratado em O Acontecimento para além do acontecimento: reverberações heurísticas, de Vera França. Através de uma abordagem determinista, a autora afirma que “estamos diante de um mundo que credita poder criador e onipotente aos meios de comunicação, algo além de qualquer referente ao plano da realidade”. Pelo acontecimento fabricado, isto é, algo falso, simulacro, algo de origem não espontânea, mas planejado, em suma, uma série de acontecimentos que antecedem a abordagem midiática de algo, sendo na verdade uma criação da própria mídia.

Uma escolha interessante da produção foi a não aparição do rosto do presidente. Ele está sempre em cena, sendo citado ou tendo os seus desejos atendidos, mas em momento algum a sua face é mostrada, o que colabora com o clima de mistério. Com trechos em que a câmera dialoga com a linguagem documental, o filme ainda tem alguns zoons e imagens granuladas, o que nos lembra, em alguns aspectos, a linguagem televisiva da época, elementos capazes de nos fazer pensar que estamos diante dos bastidores de uma produção.

Visto vinte anos depois de seu lançamento, Mera Coincidência mostra-se bastante atual, pois os esquemas de corrupção, mascaramento da verdade e uso da sociedade do espetáculo como palco para resolução de questões públicas e individuais ainda são algo bastante vigente, temas que provavelmente serão partes integrantes do tópico “atualidades” para o resto de tempo que ainda há para a humanidade. É uma sina, algo que parece que nunca terá fim.

Os envolvidos na produção fazem questão de reforçar que o filme não tem ligação nenhuma com o escândalo que colocou Bill Clinton nos holofotes na época, porque, segundo os realizadores, Mera Coincidência já estava em andamento quando tudo aconteceu. Para quem não se recorda, o então presidente dos Estados Unidos foi acusado de manter um relacionamento extraconjugal com a estagiária Monica Lewinsky, de 23 anos. Logo de início, ele negou qualquer envolvimento com o presidente, mas, três dias depois, a imprensa já detinha fitas com gravações que continham conversas telefônicas da moça com uma amiga a comentar sobre o relacionamento com Clinton.

A mídia ficou em polvorosa e o presidente precisou dar declarações em público, juntamente com a sua então esposa Hilary Clinton. Alguns meses depois, entretanto, outras “verdades” vieram à tona, já que, segundo a investigação, o presidente teria se relacionado sexualmente com a estagiária no Salão Oval da Casa Branca. Quem revelou tudo foi Linda Tripp, amiga de Lewisnky, responsável por entregar tais gravações ao procurador Kenneth Starr. Levado à justiça, Clinton respondeu a um processo de impeachment e quase não conseguiu concluir o seu segundo mandato. O clima de “baixaria” de elite ganhou maior projeção por conta da obrigação de Clinton em confessar tudo diante da sua esposa nos tribunais, pois um vestido utilizado por Lewinsky, contendo vestígios de sêmen do presidente, constava das provas em mãos da promotoria.

Entre as principais críticas do filme, podemos destacar a maneira como a mídia pega determinado releases e os despeja na sociedade, as estratégias belicistas dos Estados Unidos para resolver os seus problemas diplomáticos e a ignorância da população de uma nação que, em muitos casos, sequer conhece o que acontece ao redor do planeta. Observe a guerra da Albânia, criada em estúdio e ofertada ao público ávido por notícias constantes: o que a produção nos oferta neste momento é uma irônica metáfora para o posicionamento da população que sequer questiona os conflitos, porque, na verdade, nem conhece algo além do espaço que habita.

A produção veio à tona num período em que a internet tinha começado a se espalhar. Sinal dos tempos, Mera Coincidência é para a sociedade o que Rede de Intrigas, de Sidney Lumet, foi nos anos 1970: uma profecia sobre a relação dos seres humanos com o campo da comunicação, área utilizada como espaço para estabelecimento de estratégias que contemplassem determinados pontos de vista, nem sempre éticos, em detrimento de outros. Simulacro do nosso contemporâneo, afinal, aqui no Brasil, temos a Rede Globo, não é mesmo, caro leitor?

Mera Coincidência (Wag The Dog) — Estados Unidos, 1997
Direção: Barry Levinson
Roteiro: David Mamet, Hilary Henkin
Elenco: Anne Heche, Anthony Holiday, Carmen Carter, Chris Ellis, Christine Devine, Cliff B. Howard, David Koechner, Denis Leary, Drena De Niro, Dustin Hoffman, J. Patrick McCormack, James Belushi, James Gilstrap, Julia Waters, Kirsten Dunst, Lance Eaton, Lu Elrod, Maggie Mellin, Marguerite Moreau, Mark Vieha, Maurice Woods, Maxine Waters Willard, Phil Morris, Ralph Tabakin, Richard Lawson, Richard Saxton, Rick Scarry, Robert De Niro, Woody Harrelson
Duração: 97 min.

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