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Crítica | Meu Pai

por Iann Jeliel
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Meu Pai

O aspecto mais chamativo de Meu Pai, especialmente com relação aos demais filmes que abordam protagonistas com alguma deficiência física ou mental, é ter sua forma adequada à deficiência abordada (no caso, o Alzheimer), em que a experiência fílmica tenta de alguma maneira recriar através da imagem o sentimento de se estar com ela para que o espectador sinta mais empatia pelo referido deficiente. No entanto, se essa escolha teoricamente garantiria uma maior proximidade ao personagem debilitado em termos de drama, na prática não traz exatamente esse efeito. Porque no fim das contas, o jogo difuso criado pela montagem com as memórias do protagonista sendo revividas em ordem não cronológica acaba desviando a atenção que deveria ser destacada à dramática de sua decadência, potencializada pelo seu ponto de vista.

A história é sobre ele, mas não necessariamente é contada sob o seu ponto de vista. Porque se realmente fosse, o filme apostaria mais no efeito que tão bem sabe simular de desnorteamento mental até o momento em que sincronizasse com a conscientização iminente do personagem sobre sua condição. Em outras palavras, a narrativa não deveria ser tão didática ao contar constantemente o que ela está simulando. Se a cada bloco o filme precisa se afirmar sobre sua forma para não perder totalmente o público em sua confusão, perde-se parcialmente o sentido de adotar essa estilística. Existe o intuito de fornecer a informação com clareza para que haja um certo tom de denúncia ao tratamento dessas pessoas, além de fornecer a perspectiva desgastada de quem cuida delas. Contudo, creio que uma ou duas vezes mencionada com mais sutileza era necessário para deixar isso subentendido, uma vez que a própria montagem também sabe ser didática em contexto temporal. Quando se reforça isso cinco ou mais vezes, desgasta o intuito principal do choque vindo a compreensão do efeito, que acaba sendo entendido muito cedo, enquanto sua construção engole em prioridade a frente dos conflitos mais íntimos nos quais poderia estar uma força secundária de drama.

Claro, existe a intenção de se fazer ambas as coisas em conjunto. No entanto, faltou tato na direção de Florian Zeller em adaptar a linguagem teatral para algo mais condizente com o audiovisual. Tratando-se de seu primeiro filme no cinema, baseado em um material fonte do próprio realizador, fica evidente de onde surgiram as incongruências. No teatro, essa simulação através da cenografia faz muito mais sentido enquanto recurso de transpor o ponto de vista do deficiente, afinal, a linguagem de teatro não possui a mesma liberdade que o cinema, que pode por exemplo organizar e reordenar tudo com a pós-produção. Logo, a não linearidade do teatro é explicitamente planejada – o que justifica o constante didatismo. Assim, no caminho de valorizar essa linguagem de origem, Meu Pai acaba escancarando demasiadamente seu plano em busca de um efeito puramente imediatista, tal como o teatro realmente busca. Tanto que não demora muito para que os ciclos criados de confusões entre as memórias se fechem, retificando em divisão de “atos” da peça o impacto de estar cada vez mais perdido nas memórias.

Na verdade, os recursos cinematográficos estão ali para deixarem o planejamento teatral ainda mais seguro de eficácia, como realça o parâmetro passivo da lente, escolhendo sempre um modo mais simples de filmar seus grandes monólogos. Planos gerais fixos, entrecortados ao fim de cada fala. Nada de câmeras circulares em planos-sequência, transições elaboradas ou algo que dificulte o processo de sequenciamento do planejamento inicial.  É possível nesse contexto desvendar até porque a atuação de Anthony Hopkins é tão soberba. Pensando num filme que já não é linear e que suas filmagens possivelmente também não foram realizadas de maneira linear, a tarefa dificílima de expor ao público um arco sequencial de decadência parece fácil ao veterano. Mais ainda porque consegue ser sentida como consequência da escolha de forma, mesmo que ela não seja para fornecer seu ponto de vista. A força do ator é tamanha que valoriza mais a espontaneidade da confusão mental a que a direção e o roteiro jamais correspondem.

Olivia Colman, por exemplo, já encontra uma maior dificuldade de fazer com que a dor íntima, frequentemente escanteada no texto por uma suposta sutileza de guardar sua perspectiva, já que o filme não é sobre ela, tenha força. A personagem é mais um bom gatilho do que um bom contraponto – algo que vale para os outros do elenco, funcionais somente para o jogo inicial de confusão de memórias em que o personagem imagina seus rostos no corpo de outras pessoas –, quiçá uma boa personagem com suas próprias questões desenvolvidas. Essas que ficam muito subentendidas, algo compatível se a intenção fosse realmente não ser sua história, mas que na prática acaba também sendo, pelo que o filme se porta enquanto observador, ao invés de totalmente participante. No fim das contas, a mecânica descrita na forma como Meu Pai se constrói acaba sendo essa faca de dois gumes. É possível comprar a ideia pela inegável boa encenação particular, várias cenas isoladamente muito boas, contudo, ao fornecer pistas de mais para a montagem do quebra-cabeça, desvendamos também as etapas do efeito, tornando-o artificial ou, no mínimo, não tão espontâneo quanto deveria. Meu Pai

Meu Pai (The Father | Reino Unido – Irlanda do Norte, 2020)
Direção: Florian Zeller
Roteiro: Christopher Hampton, Florian Zeller
Elenco: Olivia Colman, Anthony Hopkins, Mark Gatiss, Olivia Williams, Imogen Poots, Rufus Sewell, Ayesha Dharker, Roman Zeller
Duração: 97 minutos

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