Home FilmesCríticas Crítica | Michael Kohlhaas (2013)

Crítica | Michael Kohlhaas (2013)

por Ritter Fan
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estrelas 4

O irritante zumbido de moscas. O desesperante grunhido de porcos. O nojento som molhado de pés pisando na lama. O imponente relincho de cavalos. O forte sopro do vento.

Michael Kohlhaas, produção franco-germânica exibida em Cannes em 2013, assim com a versão de 1969 do romance de Heinrich von Kleist de 1811, por sua vez baseado em uma história verdadeira passada no século XVI, é assim, cheio de sons enervantes, mas ricos, que dão a exata dimensão de um microcosmo representativo da Idade Média. A mixagem e edição de som, nesse filme, são especialmente importantes para envolver o espectador em uma história difícil, em que vilões se tornam vítimas e mocinhos se tornam vilões. Afinal de contas, histórias de vingança bem contadas, que devidamente pesam as consequências para os dois lados, não são agradáveis e bonitinhas.

Muito ao contrário, na verdade!

Vingança pode até ser um sentimento corriqueiro, banalizado por atos de violência que vemos mundo afora. Mas raramente pensamos no que está envolvido nela. No que ela pode custar não só para as pessoas diretamente envolvidas no processo, mas também para todos os demais. Por que se vingar? Vale a pena se vingar? Vingança custe o que custar? Essas e outras perguntas são levantadas e, de certa forma, deixadas no ar, para reflexão posterior, nessa magnífica versão de Michael Kohlhaas.

Uma vez imersos no universo diegético pelos sons magistralmente inseridos na trama, logo começamos a verificar a fotografia de Adrien Debackere e Jeanne Lapoirie. O que vemos é lindamente feio, escuro, tenebroso mesmo, evocando uma época difícil e retirando todo o charme que nos acostumamos a ver em filmes do gênero. Mesmo as tomadas abertas, mostrando paisagens não são aquilo que esperamos. O terreno é acidentado. Não há flores e os homens caminham e cavalgam com dificuldade. O sol não aparece constantemente e nunca vemos artificialmente a imponência que ansiamos ver. Michael Kohlhaas, de certo forma, é o anti-Coração Valente.

Só essa descrição poderia afastar muita gente de Michael Kohlhaas, mas não deveria. Mesmo que esqueçamos de todo o resto, o filme funciona como uma espécie de lembrete de que nem toda fita precisa se basear em gente bonita, paisagens exuberantes, vilões artificiais e causas nobres para deixar o espectador de boca aberta. O mesmo efeito pode ser obtido – e diria com o mesmo grau de prazer, se soubermos procurar esse prazer – com imagens escurecidas, tristes mesmo.

E há Mads Mikkelsen, no papel-título, para trazer toda a imponência que precisamos. Em um papel que lembra fortemente o médico extremamente culto em O Amante da Rainha, Mikkelsen faz um tratador e comerciante de cavalos de montaria que, ao tentar atravessar a fronteira para a Saxônia, tem que deixar duas de suas magníficas montarias como garantia. Acontece que o Barão que comanda a região (Swann Arlaud, em um papel vilanesco sem falas) devolve os cavalos literalmente em frangalhos, além de mandar os cachorros em cima do mais fiel servo de Kohlhaas.

Michael Kohlhaas, então, faz de tudo para buscar Justiça perante os órgãos competentes, sem nenhum resultado. Em uma escalada de violência, sua amada esposa, Judith (Delphine Chuillot) é brutalmente assassinada. Sem saída, Kohlhaas, então, passa a reunir um exército para lutar abertamente contra tudo e todos de maneira a obter sua vingança, que ele eufemisticamente chama de “reparação”.

Não esperem fantásticas lutas de espada. Atos heroicos e personagens sem dubiedade. Essa película não tem absolutamente nada disso, o que é condizente com a mixagem e edição de som e fotografia que descrevi acima. Toda a ação é simples, direta, sem firulas. Kohlhaas e seus soldados entram nos castelos e matam sem piedade, covardemente até, sem pensar duas vezes em chacinar pessoas através de portinholas e de atear fogo em conventos. O Barão e a “reparação” são os objetivos finais, nem que isso signifique que cidades inteiras perecerão e que potencialmente Lisbeth (Mélusine Mayance), filha do protagonista, ficará sem o pai.

É angustiante ver Kohlhaas, enlouquecido pelo ódio, mas sereno e sério, cometer os maiores atos de barbaridade achando que ele está em seu direito. Será que está? Ou será que o padre que consegue obter uma trégua em nome da Princesa de Angoulême (Roxane Duran) está certo e o que Kohlhass está fazendo não tem sentido e que Deus quer que ele aceite as injustiças, pois só assim ele se livrará delas de verdade?

Esse padre sem nome, vivido por Denis Lavant, é chamado, nos créditos, de “O Teólogo”, mas a história mostra que ele foi ninguém mais ninguém menos do que o próprio Martinho Lutero. E o interessante é que o filme não mostra isso, não se fia nisso para desvelar sua história ou para surpreender o espectador.

Apesar de todo o elenco estar absolutamente eficiente, com destaque para a pequena Mélusine Mayance, Denis Lavant e Bruno Ganz (esse último como o governador da região e cliente de Kohlhaas), é impossível não chamar especial atenção para a intensidade de Mikkelsen. Ator de feições no mínimo marcantes, ele se especializou em fazer papéis de poucas, mas eficientes palavras. No entanto, mesmo calado, a amplitude das emoções que ele é capaz de demonstrar é sempre inesquecível e, em Michael Kohlhaas, ele dá um show.

Vejam a sequência final, por exemplo, cujos detalhes não vou contar para não estragar eventuais surpresas. Nela, Mikkelsen, quase sem falar, transmite muito claramente – mas sempre de forma magnificamente sutil – diferentes emoções que vão desde a alegria até o pavor. E tudo isso em menos de 10 minutos. São momentos que, assim como tudo que vemos ao redor nesse filme, transmitem tamanha veracidade à história que é impossível não se deixar envolver pela trama de vingança e, porque não, redenção.

Se Michael Kohlhaas tem um defeito, esse é a montagem feita pelo diretor em parceria com Sandie Bompar. Com o uso de cortes bruscos para fazer transições, os dois conseguem manter a essência do que querem transmitir ao espectador, mas eles são muito menos eficientes na construção da passagem de tempo. Por diversas vezes, a não ser pela ajuda artificial de diálogo, fica impossível entender quanto tempo se passou. O primeiro desses momentos é o quanto se passa entre a cena inicial do pedágio em que Kohlhaas deixa seus cavalos até ele os buscar de volta. No filme, a impressão que dá é que dias se passaram, mas, na verdade, foram três meses. O mesmo vale especialmente para a cruzada de Kohlhaas contra o Barão e todos que o ajudam. Ele sai de casa com meia dúzia de servos e aparece na cena seguinte com um pequeno batalhão, somente para, logo em seguida, surgir com um exército.

Somente pesquisando os fatos históricos – ou lendo o romance – descobrimos que seis anos se passaram desde o começo do filme, ainda que muito claramente o diretor não tenha querido fazer sua película transcorrer por mais do que alguns meses, já que Lisbeth não cresce. Mas, se concluirmos que a vontade do diretor foi de comprimir a passagem de tempo, então fica difícil aceitar o caos que Kohlhaas causa por toda a região.

Só que os problemas na montagem, apesar de um tanto graves, se dissolvem até certo ponto diante dos detalhes que a produção imprime na ambientação do filme, no som e na fotografia, além do figurino e, claro, do marcante trabalho de Mads Mikkelsen. Se você se lembrar do zumbido das moscas ao final, a obra terá obtido o efeito desejado.

Michael Kohlhaas (França/Alemanha, 2013)
Diretor: Arnaud des Pallières
Roteiro: Christelle Berthevas, Arnaud des Pallières, Heinrich von Kleist (romance)
Elenco: Mads Mikkelsen, Mélusine Mayance, Delphine Chuillot, David Kross, Bruno Ganz, Denis Lavant, Roxane Duran, Paul Bartel, David Bennent, Swann Arlaud
Duração: 122 min.

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