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Crítica | Mickey7, de Edward Ashton

A cópia da cópia da cópia.

por Ritter Fan
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Como é cada vez mais comum em uma indústria audiovisual em ebulição em grande parte em razão da explosão do streaming, o romance de ficção científica Mickey7, do razoavelmente desconhecido autor americano Edward Ashton, teve seus direitos de adaptação audiovisual adquiridos antes mesmo de ser lançado no mercado. E uma das características mais importantes da campanha de marketing de seu lançamento foi justamente salientar esse aspecto e, mais ainda, em deixar bem claro que a obra será o próximo filme de ninguém menos do que o diretor coreano Bong Joon Ho, de Parasita, com Robert Pattinson, o novo Batman, no elenco.

Se o filme será mesmo produzido e se terá os citados nomes por trás e a frente das câmeras é ainda difícil de saber, já que Hollywood é volátil e tudo muda muito rapidamente, mas é notável reparar como usar especulação com base em realidade para vender uma obra funciona, pois eu mesmo, que nunca tinha ouvido falar seja em Ashton ou em Mickey7, só me interessei em pegar para ler o romance justamente pela possibilidade de ele ser, futuramente, um filme do cineasta coreano, com Pattinson no protagonismo me sendo, muito sinceramente, completamente indiferente, ainda que inegavelmente uma boa escalação. Portanto, sim, caí na armadilha barata do marketing do livro e mergulhei na obra no dia em que ela chegou às livrarias lá fora.

E o livro era justamente o que imaginei que seria, uma obra cuidadosamente feita para tornar-se filme ou série e com potencial de ser apenas o primeiro capítulo em uma “saga”, já que, hoje, aparentemente, escrever livros que se bastam em si mesmos, é uma arte moribunda (o segundo romance, na verdade, já foi escrito e está com o editor para potencial lançamento em 2023). De forma alguma, porém, isso significa que Mickey7 é ruim ou que não resulta em uma experiência literária agradável. Ao contrário, trata-se de uma obra interessante, um entretenimento rápido, fácil de digerir e que ainda carrega consigo discussões filosóficas boas para conversas entre amigos que, porém, são abordadas apenas na superfície para não complicar demais as coisas. É, para todos os efeitos, semelhante ao fraco Perdido em Marte, só que com um gatilho narrativo melhor e desenvolvimento levemente mais competente que lembra o sensacional Lunar, mas sem nem de longe a mesma qualidade.

Esse gatilho é a sobrevivência de Mickey7, o sexto clone de Mickey (que nasceu como um humano normal) depois de ser deixado para morrer em um buraco gelado de Niflheim, planeta que sua missão começou a colonizar depois de uma viagem de anos de Midgard, por sua vez uma colônia já bem estabelecida do planeta Terra. A questão é que Mickey alistou-se como um Descartável (Expendable, no original) que, trocando em miúdos, tem como função justamente morrer ou, eufemisticamente, arriscar-se bem mais do que o restante da tripulação, inclusive sendo porquinho da índia para experimentações científicas, com cada morte resultante sendo revertida por meio da clonagem e da inserção das memórias e da personalidade da versão anterior – até o ponto do último upload, claro – no novo corpo. Nesse universo criado por Ashton, não só os Descartáveis são encarados com enorme preconceito pelas mais diversas razões, inclusive religiosas, como existe uma importantíssima regra que jamais deve ser quebrada: não pode haver mais de um Descartável da mesma pessoa ao mesmo tempo. E é por isso que a sobrevivência de Mickey7 é um problema, pois, quando ele finalmente retorna à base, Mickey8 já “nasceu” e os dois, juntos, passam, então, a fazer de tudo para que a duplicação não seja descoberta por ninguém.

Toda a filosofia da obra gravita ao redor do hoje bastante conhecido – graças à WandaVision – Paradoxo do Navio de Teseu, que indaga se o navio em questão que, ao longo de sua viagem de anos, passa por reparos sucessivos que, no final das contas, substituiu todas as suas pranchas de madeira, continua sendo o mesmo navio que começou a jornada. Ou, transferindo o paradoxo para o caso do romance, será que as iterações de Mickey posteriores à original são, cada uma delas, o mesmo Mickey inicial? A questão é que essa discussão existe como o artifício literário conhecido (por mim) como “oooohhhh, nossa, que bacana!”, ou seja, aquele artifício inserido na narrativa como seu pano de fundo para parecer que a história é mais inteligente e mais desafiadora do que na verdade é, algo minuciosamente trabalhado para “justificar” a leitura da obra para além de uma aventura de ficção científica rasinha como o proverbial pires.

E, como aventura sci-fi, a história funciona razoavelmente bem aqui e ali. A construção de universo por Ashton é boa, com as agruras de uma colônia já estabelecida nos flashbacks de Mickey7 em Midgard competentemente comparadas com as de uma colônia em seus primeiros dias, em que alimento e oxigênio são escassos, limitando o que a tripulação pode fazer diante da ameaça de vorazes insetos gigantes – e genéricos – locais. Não convence muito a explicação do porquê não poder haver mais cópias da mesma pessoa ao mesmo tempo, já que a lógica determinaria que esse é o melhor caminho e nem sequer há explicações para o fato de os demais membros de uma missão de apenas um punhado de pessoas responsáveis por milhares de embriões humanos congelados não terem a possibilidade de se regenerar também em caso de morte acidental. Em termos de ação propriamente dita, não há muito o que dizer, pois a tensão é localizada muito mais internamente na base montada no planeta, com o engodo dos Mickeys sendo a chave, do que no embate entre humanos e insetos, algo que é resolvido de maneira para lá de simplista.

Mas reconheço que Edward Ashton tem senso de ritmo de narrativo que mantém a história sempre funcionando e fluidez em sua escrita que acaba tornando a leitura simpática e instantânea. É aquele tipo de leitura despretensiosa e relaxante entre outras mais sérias e de conteúdo mais denso que volta e meia precisamos. Apenas acho que Ashton poderia ter se esmerado em desenvolvimento de personagens. Mickey7 é igual do começo ao fim, sem qualquer construção maior do que a realização efetiva de que as pessoas são egoístas. Mickey8 é um não-personagem, sendo muito sincero. E o mesmo vale para a namorada e o melhor amigo de Mickey7, além do chefe da base, já que eles não passam de arquétipos de personagens que existem com a exata mesma função que botões em um controle remoto: cumprir tarefas específicas e invariáveis. Essa falta de ambição de Ashton que procura apenas denominadores comuns, sem em momento algum arranhar a superfície de algo que poderia desafiar o leitor é que torna seu romance uma leiturinha simpatiquinha, mas ordinária e bem mais descartável que Mickey7. Fica a esperança, portanto, que Bong Joon Ho, se realmente continuar com o projeto de adaptação cinematográfica da obra, saiba usar seu expertise de cineasta consagrado para melhorar substancialmente o material fonte.

Mickey7 (EUA, 2022)
Autor: Edward Ashton
Editora: St. Martin’s Press
Data original de publicação: 15 de fevereiro de 2022
Páginas: 304

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