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Crítica | Mike Mignola: Desenhando Monstros

O pai de Hellboy nos holofotes.

por Ritter Fan
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O documentário Desenhando Monstros (Drawing Monsters) foi resultado, em grande parte, de uma muito bem sucedida campanha no Kickstarter que teve mais de 4.600 apoiadores e que arrecadou quase 10 vezes mais do que o objetivo inicial de 58 mil dólares. Trata-se de uma obra feita por fãs de Mike Mignola, criador de Hellboy e todo o universo – o chamado “mignolaverso”, apesar de ele próprio não gostar do nome – que resultou daí, para os fãs de Mike Mignola, pelo que a abordagem é quase que integralmente elogiosa a ponto de até mesmo os conflitos e os aspectos negativos da personalidade do autor, incluindo seu tratamento e relação com colaboradores, ganharem uma luz favorável.

Em termos estruturais, os diretores Jim Demonakos, idealizador da campanha de patrocínio coletivo e fundador da Emerald City Comic Con, de Seattle, e Kevin Konrad Hanna, originalmente um diretor de arte especializado em publicidade, escolheram o caminho mais simples e, claro, mais fácil para conduzir seu projeto, ou seja, a abordagem cronológica da carreira do autor, usando como âncora trechos de diversas entrevistas com o próprio Mignola que, ao que tudo indica, participou de braços abertos do projeto. Em outras palavras, ouvimos do próprio Mignola sobre sua vida, com uma vasta quantidade de outros depoimentos e entrevistas – incluindo toda sua família, mas também nomes importantes do entretenimento ligados ou não diretamente com Mignola como Guillermo Del Toro, Henry Gilroy, Patton Oswalt, Ron Perlman, Doug Jones, Adam Savage, Fábio Moon e Neil Gaiman – , além de imagens de arquivo e também sequências de filmes que servem para dar o estofo necessário para ilustrar e reiterar o que ele diz.

Apesar de, hoje em dia, o “mignolaverso” ser o maior universo compartilhado em quadrinhos fora da Marvel e DC, ainda é possível dizer que Hellboy é bem menos conhecido do que talvez devesse ser, pelo que o documentário, apesar de ser feito para qualquer um que tenha interesse apenas marginal no personagem, ganha vida mesmo para aqueles que realmente conhecem o material fora dos filmes. E é justamente em seu terço inicial – um pouco mais até – que o documentário é mais valioso, pois ele lida justamente com o começo, a relação de Mignola com o pai, com os irmãos e seu desbravamento do mundo dos quadrinhos começando como arte-finalista para a Marvel, depois como autor e artista de quadrinhos para a DC quando, com seu trabalho em Odisseia Cósmica, teve oportunidade de viver cercado de personagens originalmente criados por Jack Kirby, finalmente encontrando seu estilo, mas ao mesmo tempo percebendo que super-heróis não eram sua praia e que o que ele realmente gostava era… você adivinhou… desenhar monstros.

Hellboy – ou originalmente Hell Boy – foi uma semente de ideia a partir de uma ilustração para um catálogo de uma convenção de quadrinhos que ele fez germinar quase que imediatamente ao ter sua ideia comprada, sem rodeios, pela então minúscula Dark Horse Comics. Afinal, a melhor garantia de que ele sempre desenharia monstros era fazer de seu protagonista um monstro. Todo esse começo de carreira é fascinante, assim como o apoio que recebeu de amigos e principalmente de sua esposa Christine que, mesmo diante do relativo fracasso da primeira minissérie – Sementes da Destruição, escrita por John Byrne a pedido de Mignola, já que ele não se considerava roteirista – o instigou a continuar desenhando e, pela primeira vez, também escrevendo, o que, com o tempo, acabou criando tração no mercado de quadrinhos e chamando a atenção de seus pares e de um público cada vez maior, mas não tão grande assim.

Quando o documentário envereda por caminhos mais familiares em sua segunda fase, focando nos filmes de Guillermo Del Toro, ele continua interessante, sem dúvida, mas não tanto – falando como um fã de quadrinhos, claro – como o começo. No entanto, dois aspectos relevantes acontecem nessa parte do longa. A primeira delas é uma visão bem clara de algo que o senso comum já apontava, ou seja, o quanto uma obra cinematográfica pode ser importante para a divulgação de quadrinhos. Hoje, sabemos disso ao constatarmos que os filmes do Universo Cinematográfico Marvel e do DCEU são muito mais “famosos” do que os quadrinhos em que foram baseados. Mas, como Hellboy era um personagem de nicho de uma editora já maior, mas ainda pequena, os filmes de Del Toro tiveram um efeito mais claro de trazer o demônio vermelho de chifres arrancados da obscuridade para o estrelato para a boca de pessoas que sequer sabiam da existência dele e que – meu cinismo fala mais alto – sequer leram as HQs depois.

O outro aspecto relevante que acontece nessa parte é que começamos a ver rachaduras na abordagem chapa branca do documentário, com pistas de conflitos entre Mignola e Del Toro e, depois, com a expansão do universo de Hellboy e criação efetiva do mignolaverso – só possível em razão do primeiro filme, vale dizer – a relação difícil entre Mignola e os artistas que passaram a desenhar e a escrever personagens desse hoje vastíssimo universo. Mas, como disse no começo, tudo é feito com muito cuidado e muita fleuma, com o próprio Del Toro e outros artistas reconhecendo o quanto Mignola é turrão, irascível e duro, mas relegando esses defeitos a segundo ou terceiro plano ao reconhecerem a genialidade do artista. Desconfio até que o documentário sequer teria a contribuição de Mignola se não fosse prometido ao autor que ele sairia quase que como uma figura messiânica da história…

Seja como for, uma lição de Desenhando Monstros deveria ser levada aos ditos fãs de quadrinhos mundo afora que têm problemas com as adaptações cinematográficas e televisivas de seus personagens queridos. Quando o conflito de visões entre Mignola e Del Toro ganha algum relevo no documentário, algo mais evidente durante a produção de Hellboy II – O Exército Dourado, o próprio Mignola – reparem bem, o próprio Mignola – deixa bem claro, diante das câmeras, que ele, em última análise, concorda com algo que ouviu diretamente de Del Toro quando reclamou que Hellboy não faria determinada coisa daquele jeito, ou seja, que é verdade que “o seu [de Mignola] Hellboy não faria isso, mas o meu [de Del Toro] faria”. Isso, em poucas palavras, é uma lição que precisa ser aprendida por muita gente por aí…

Terminando com o reconhecimento apenas de passagem da existência do reboot cinematográfico de 2019, mas sem tecer comentários em uma ou outra direção para além do trabalho de David Harbour, o documentário deixa evidente que o mignolaverso, agora enriquecido por um exército de roteiristas e artistas para dar conta da expansividade da propriedade e sem o controle estrito de Mignola por trás, está aí para ficar, sem um fim em vista, algo que Gaiman inclusive usa para lamentar que Mignola nunca receberá o reconhecimento efetivo que merece como gênio da Nona Arte antes que haja um encerramento reconhecível de seu trabalho (pode ser minha leitura, mas, para mim, ele deu a entender que Mignola precisa morrer para ganhar o reconhecimento que merece, algo que, de fato, não é incomum nas artes).

Desenhando Monstros, apesar de ser um “espaço seguro” em que Mike Mignola é um rei benigno e perfeito (ou quase) é um documentário agradável de se assistir, rico em informações e em entrevistas e depoimentos variados e que goza de uma produção de qualidade em que é perfeitamente possível ver o cuidado com que ele foi feito e a que o valor arrecadado na campanha coletiva foi destinado. É, para todos os efeitos, uma rara obra sobre a indústria de quadrinhos – mais rara em se tratando de uma editora que até pouco tempo era independente – e sobre um autor que, de fato, merece mais reconhecimento do que ele hoje em dia tem.

Mike Mignola: Desenhando Monstros (Mike Mignola: Drawing Monsters – EUA, 2022) 
Direção: Jim Demonakos, Kevin Konrad Hanna
Com: Mike Mignola, Scott Mignola, Todd Mignola, Christine Mignola, Mike Carlin, Arthur Adams, Ben Saunders, Steve Purcell, Chris Roberson, Stephen Green, Duncan Fegredo, Guillermo Del Toro, Henry Gilroy, Patton Oswalt, Tad Stones, Ron Pearlman, Mike Richardson, Michael Avon Oeming, Adam Savage, Rebecca Sugar, Jason Shawn Alexander, Jorge Gutierrez, Katii O’Brien, Neil Gaiman, Victor Lavalle, Chris Prynoski, Doug Jones, Christopher Golden, Tom Sniegoski, Dave Stewart, Gary Deocampo, Fábio Moon, Leila Del Luca, Katie Mignola, Tara McPherson
Duração: 98 min.

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