Para criar Peaky Blinders, Steven Knight baseou-se de muito longe na gangue homônima real de jovens delinquentes que atuou em Birmingham entre os anos 1880 e 1920, criando, porém, uma história própria e completamente fictícia. Agora, em Mil Golpes, o showrunner retorna ao mesmo tipo de fonte inspiradora, só que agora em Londres e situando a série no final do século XIX, trazendo à lume a longeva gangue feminina conhecida como Quarenta Elefantes, nome derivado do famoso conto árabe Ali Babá e os Quarenta Ladrões, com a troca de “ladrões” por “elefantes” como indicação do local de sua fundação, o distrito de Elephant and Castle, no então empobrecido leste da capital britânica (East London), cuja primeira líder identificável foi Mary Carr.
No entanto, diferente de Peaky Blinders, Knight dessa vez decidiu aproximar-se mais da realidade, trazendo a própria Mary Carr, vivida por Erin Doherty, como uma da protagonistas, além de outros nomes de sua gangue que se notabilizaram com o tempo, especialmente Alice Diamond (Darci Shaw) que, aqui, é uma novata recrutada por Carr para sua equipe de ladras profissionais que se especializam em pequenos e médios furtos que vão de carteiras e relógios retirados diretamente dos bolsos de transeuntes e espectadores desavisados, como ataques relâmpago a lojas de luxo na parte rica da cidade, além de golpes variados, um deles servindo de abertura para a história. Além de Mary Carr e a mitologia das Quarenta Elefantes, Knight cria convergência com as também verdadeiras histórias dos pugilistas Hezekiah Moscow (Malachi Kirby), da Jamaica, e Henry “Sugar” Goodson (Stephen Graham), de Londres, em uma época de transição entre o boxe sem luvas, mais violento e mortal, para o boxe com luvas, organizado por aristocratas em um ambiente completamente diferente.
Não se enganem, porém, Mil Golpes é uma série que, para além dos nomes em questão, é inteiramente ficcional, mas que nasce com a vantagem de jogar luz na referida gangue exclusivamente feminina que, segundo dizem, tem origem ainda no século XVIII e em Moscow, personagem esquecido pela história por razões óbvias, apesar de ter sido sensação em sua época, o que imediatamente cria aquela sensação de estarmos vendo a realidade sendo ainda mais estranha que a ficção. Sem perder tempo, os personagens centrais imediatamente convergem em East London, com os recém desembarcados Moscow e seu melhor amigo Alec Munroe (Francis Lovehall), depois de muito esforço e unicamente em razão da herança mista africana e chinesa de Moscow (algo que não se tem certeza, mas que é sugerido pelo pseudônimo que ele usa, Ching Hook), conseguindo estadia no decrépito porão de um hotel gerenciado pelo chinês Lao Lam (Jason Tobin), o mesmo lugar que Mary Carr usa para seus encontros amorosos que mais parecem transações comerciais e na mesma região controlada por Sugar Goodson, dono de uma taverna com um ringue de lutas atrás (um ringue de lutas com um bar na frente talvez seja a descrição mais honesta), que imediatamente vê no jamaicano um rival e inimigo.
Também sem perder tempo, a história passa a girar em torno de um ambicioso furto planejado por Carr – mas não autorizado por sua mãe, a poderosa chefona das Quarenta Elefantes – para “subtrair” a prataria que será presenteada a uma delegação chinesa pela Rainha da Inglaterra e também na ascensão de Moscow no “pugilismo nutella” (como Sugar Goodson chamaria hoje em dia o boxe sem luvas a que é adepto), algo facilitado por Carr também como parte de seu plano e, que, claro, irrita Sugar por todos os ângulos possíveis. É um mundo de violência e preconceito, com a dupla jamaicana precisando navegar em águas turvas e perigosas que trazem obstáculos a cada esquina, algo que os roteiros trabalham com inteligência e ótimo desenvolvimento, mesmo que por vezes beneficiando-se de uma quantidade exagerada de conveniências narrativas, muitas delas provavelmente forçadas pelo número modesto de episódios.
Essa duração apertada para uma narrativa tão rica gera uma certa correria no terço final da história, com a montagem pecando diversas vezes na passagem temporal, algo que atrapalha a imersão na temporada por tirar a fluidez e a unicidade do conjunto dos episódios, quase fazendo com que cada um lide com uma história autocontida. Sei muito bem que séries britânicas via de regra têm essa mesma quantidade de episódios, mas, em Mil Golpes, Knight decidiu cobrir um período de tempo mais amplo que, porém, não parece ser assim, levando o espectador a alguns momentos de dúvida, como se as movimentações de peças no tabuleiro tenham sido suprimidas sem a menor cerimônia. Por outro lado, essa escolha ajuda no que realmente interessa, que é o foco em Carr, Moscow, Sugar e também em seu irmão Edward “Treacle” Goodson (James Nelson-Joyce), que funciona como a voz da razão para um Sugar que age puramente por instinto e que parece ser movido por raiva e rancor. Esse núcleo duro de personagens é trazido maravilhosamente bem à vida pelo elenco, com Doherty transitando entre a força e a independência que sua personagem precisa mostrar ao mundo e a compaixão e os sentimentos que elege esconder, Kirby fazendo seu Moscow com inocência temperada por um passado trágico e Graham transformando seu Sugar em uma força da natureza, em um vulcão sempre prestes a entrar em erupção, com Nelson-Joyce correndo por fora como o Grilo Falante de Sugar e Lam sendo prejudicado por um personagem cujas ações parecem materializar a conveniência narrativa para além do que talvez seja aceitável.
Claro que, como é comum nas produções capitaneadas por Knight, a reconstrução da época é estupenda, com o choque entre as regiões pobres e ricas de Londres sendo ainda maiores do que o que vemos em Peaky Blinders, quase como se a primeira representasse as sombras para a luz da segunda, ainda que, ironicamente, a humanidade na segunda desapareça em meio à opulência e se sobressaia justamente nas ruas sujas e estabelecimentos modestos de East London. Ver Moscow e Carr transitando de um lado para o outro, entre luz e sombra, é um grande trunfo da temporada e uma demonstração do cuidado da direção de arte e fotografia da obra. Com uma segunda temporada já filmada, essa inusitada saga londrina ainda bem continuará por pelo menos mais seis episódios, ainda que haja material histórico suficiente para ainda mais se ela alcançar o público da maneira como a série protagonizada por Cillian Murphy alcançou.
Mil Golpes – 1ª Temporada (A Thousand Blows – Reino Unido, 21 de fevereiro de 2025)
Criação: Steven Knight
Direção: Tinge Krishnan, Nick Murphy, Coky Giedroyc, Ashley Walters
Roteiro: Steven Knight, Insook Chappell, Harlan Davies, Ameir Brown, Yasmin Joseph
Elenco: Malachi Kirby, Jair Ellis, Erin Doherty, Francis Lovehall, James Nelson-Joyce, Jason Tobin, Darci Shaw, Hannah Walters, Morgan Hilaire, Caoilfhionn Dunne, Nadia Albina, Jemma Carlton, Tom Davis, Daniel Mays, Stephen Graham, Susan Lynch, Gary Lewis, Robert Glenister
Duração: 318 min. (seis episódios)